Por Gustavo Delbin e Fernanda Chamusca[2]
Membros Filiados ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
Buenos Aires, capital da Argentina, sediou o FIFA Football Law Annual Review[3], a edição anual para revisão do “Direito do Futebol”, nos dias 10 e 11 de março de 2022, após longos dois anos de pandemia, sem eventos presenciais. Este evento tem o intuito de reunir os grandes nomes do Direito Desportivo, especialmente do Futebol pelo mundo e debater os avanços das políticas e projetos da entidade internacional, abrindo espaço para que stakeholders e advogados possam opinar sobre os próximos passos nas normas do futebol.
Na edição de 2022, em especial, houve ainda um clamor particular. Diante do conflito armado e estado de guerra estabelecido entre a Rússia e a Ucrânia, a FIFA precisava se posicionar sobre a situação, bem como, informar aos operadores do mercado do futebol, qual seria a postura da entidade com relação aos contratos dos atletas registrados em clubes ucranianos e russos, “que tiveram seus esportes impactados de maneira brusca e ampla”[4].
Além disso, o futebol esteve em plena transformação nos últimos três anos, com projetos importantes a executar e desenvolver, contudo, fomos cerceados pela pandemia e paralização das atividades. A retomada dos projetos da entidade internacional para o mercado precisou ser feita de forma gradativa, em especial, ante o retorno dos eventos e estádios com capacidade total de público ter acontecido há pouco mais de 1 (um) mês[5] em partidas válidas pelas classificatórias europeias da Copa do Qatar.
Dentre as primeiras novidades, a reforma no sistema de registro e transferência de atletas foi o grande destaque, estabelecendo três significantes adaptações:
- As transferências temporárias internacionais;
- Proteção aos atletas menores de idade; e,
- Regras temporárias para atletas estrangeiros na Ucrânia e Rússia.
As transferências internacionais temporárias, também conhecidas como empréstimos internacionais, estabelecem-se como uma modalidade bastante utilizada no mercado do futebol. Por meio delas, são firmados vínculos federativos provisórios entre atletas e clubes, ou seja, o registro principal com o clube anterior se mantem suspenso até o retorno do atleta, exceto se as partes pactuarem opção de transferência definitiva desse atleta e esta for executada pelo novo clube, que passará a deter o vínculo federativo definitivo desse atleta.
Os empréstimos, contudo, poderiam ser utilizados de forma precária, por meio do monopólio de mercado dos grandes clubes em relação aos de menor expressão. Com o exemplo do que aconteceu com o Chelsea em 2019, que foi sancionado pela FIFA e ficou proibido de contratar novos atletas nas duas janelas de transferências subsequentes àquela, todavia, possuía 41 (quarenta e um) atletas emprestados pelo mundo e que poderiam retornar à equipe, em ação que não violaria a punição[6].
Na tentativa de evitar essa lacuna das regras e inovar o sistema, a FIFA constituiu novos preceitos aplicáveis aos empréstimos internacionais, estabelecendo limites quanto ao número de atletas emprestados de um clube, normativa que entrará em vigor a partir do dia 1º de julho deste ano de 2022.
Os clubes, ante a nova regra, deverão respeitar um limite à quantidade de empréstimos internacionais, em geral, para qualquer entidade, cada clube somente poderá possuir, entre atletas emprestados para outros clubes e em cessão temporária ao Clube:
– Até 8 (oito) profissionais em empréstimo ou emprestado na temporada 2022/2023,
– Até 7 (sete) profissionais na temporada 2023/2024,
– Até 6 (seis) profissionais na temporada 2024/2025.
Importante salientar que as federações nacionais, associações-membro da entidade máxima do futebol, deverão também implementar essa limitação em seus sistemas domésticos, até o prazo de 1º de julho de 2024[7].
Os clubes, ademais, face a nova regra, terão de se ater ao número limitado de empréstimos entre dois clubes específicos: um clube somente poderá ter até 3 (três) profissionais em empréstimo ou emprestado para outro clube, na temporada, independentemente da idade desses jogadores. Isso quer dizer que, por exemplo, por meio dessa nova normativa, o Manchester City e o New York City FC somente poderão partilhar entre si até 3 (três) atletas emprestados, para evitar a manipulação do mercado de registros e transferências e um monopólio de contratações dentro de um grupo econômico[8].
Referida restrição, diga-se, rendeu muitas críticas à FIFA ante o restrito número estabelecido, considerando que englobam a entrada e saída desses atletas. Contudo, é possível compreender a intenção de valorizar o futebol de base e a estabilidade contratual, como princípios para essa alteração.
Tendo em vista as exceções estabelecidas pela FIFA, atletas entre os 15 e 21 anos de idade, registrados pelo período, contínuo ou não, de 3 (três) temporadas inteiras ou 36 (trinta e seis) meses, estarão isentos dessa limitação para empréstimos internacionais. Vale mencionar que esse empréstimo deverá acontecer antes do fim da temporada em que o atleta completa os seus 21 anos e, de forma cumulativa, deverá constar o vínculo de formação do atleta com o clube anterior[9].
Das inovações elencadas, a proteção aos atletas menores de 18 (dezoito) anos também teve o seu destaque. Considerando a proibição do artigo 19 e 19bis do Regulamento de Status e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTP), atletas até essa idade não podem ser transferidos internacionalmente, salvo as exceções elencadas na mesma regulamentação. O que se observava, entretanto, era a necessidade de salvaguardar as exceções de causas humanitárias, academias e escolinhas, testagens e peneiras, além de normativas basilares de proteção a esses menores.
O artigo 19, parágrafo 2º, inciso “d”, do RSTP determina a opção de atletas poderem atuar em outros países quando restam caracterizadas situações como a necessidade de fuga dos seus países de origem, desacompanhado dos seus genitores, por proteção à vida ou causas humanitárias relacionadas à liberdade religiosa, racial, étnica, social ou política. A proposta de mudança da FIFA se escora na ideia de estender os efeitos desse artigo para “qualquer circunstância que ameace a vida do menor”, considerando também as leis domésticas das nações que os coloque como vulneráveis e forneça proteção estatal para sanar a situação.
A intenção da entidade em apresentar a proposta de extensão das hipóteses mencionadas compreendeu a ideia de resguardar a flexibilidade e reconhecer as situações reais que assolam o mundo, objetivando analisar também a ideia de considerar apenas países de origem e domicílio do atleta, bem como, o status destes em cada circunstância que venha a precisar da proteção citada[10].
Somado a isso, a FIFA propôs englobar novos princípios basilares e obrigações para os clubes que venham a registrar um menor por meio do sistema nacional convencional, hipótese de transferência internacional ou primeiro registro: (i) o dever de cuidar e dar assistência; (ii) tomar providências contra qualquer situação de constrangimento ou abusos e (iii) garantir total condição e oportunidade de acesso à educação.
Nesse sentido, o artigo 19bis dispôs sobre as academias privadas de futebol, quais sejam, as conhecidas escolinhas, visando proporcionar mais clareza e segurança jurídica na função de iniciação esportiva e formação humana. Os cubes restam obrigados a firmar contratos de cooperação com as escolinhas, para fins de colaboração, garantindo a comunicação com as entidades de administração do desporto, salvaguardando todos os direitos das crianças e adolescentes de forma plena e segura.
Cediço que a regulamentação será de grande valia para a amplitude do rol de proteção, assim como, as novas definições dos testes de jogadores. O teste passa a ser entendido como o período temporário em que o atleta, não registrado ao clube, é avaliado pela entidade, com o potencial de se efetivar esse registro no futuro. O novo entendimento vem como aliado de novas condições gerais e requisitos, mínimos e específicos, para configurar esse instituto, juntamente com a duração permitida e as obrigações dos clubes.
É possível verificar que o sistema de registros e transferências se aprimorou com o tempo e caminha numa crescente positiva para sanar lacunas e quaisquer novos elementos que mereçam apreciação e atenção.
E se a matéria evolui, o procedimento também se altera. Na linha das transformações, em outubro de 2021, começou a funcionar o novo FIFA Football Tribunal.
O que antes era entendido como comitês independentes, como a Câmara de Resolução de Disputas (DRC), o Comitê de Status de Jogadores (PSC) e o Comitê de Menores, hoje passam todos a fazer parte do grande tribunal, que conta, ainda, com o novo comitê vinculado a nova regulamentação e parte jurisdicionada: o comitê dos agentes.
O FIFA Football Tribunal (FT) passa a ser o sistema de resolução de disputas da entidade internacional, de forma centralizada, estabelecendo novas regras processuais e mantendo a Corte Arbitral do Esporte (TAS/CAS) como o órgão de apelação. O FIFA RSTP irá delimitar, de forma clara e concisa, incorporando o que antes pertencia aos antigos órgãos de resolução de disputas, com suas competências, as consequências do descumprimento das decisões e a implementação de novas decisões e propostas. Uma nova estrutura se estabelece para alcançar maior efetividade no procedimento de resolução de disputas, por meio de novas regras gerais processuais e regulamentações específicas para cada tipo de procedimento.
Dentre as inovações, uma das mais positivas foi a isenção das custas para toda e qualquer pessoal natural e física que venha a ser parte de um procedimento, por exemplo, como atletas, treinadores e agentes. Outra mudança significativa com relação aos custos foi o prazo para pagamento. O FT passa a estabelecer o período de 10 (dez) dias para requerer e pagar as custas processuais, sob pena de deserção.
Outra grande novidade são as medidas de urgência no procedimento de resolução de disputas. A tramitação especial e célere de determinadas ações, em que a espera poderá acarretar um dano grave ao resultado útil do processo, possibilitaram o estabelecimento das decisões preliminares ao julgamento completo do processo. Para nós brasileiros este instituto já é amplamente visto no direito civil e na Justiça comum, podendo ser identificado desportivamente também nos processos da nossa Justiça Desportiva e nos procedimentos da Câmara Nacional de Resolução de Disputas da CBF (CNRD).
Por fim, a grande curiosidade – e necessidade – dos operadores do mercado do futebol nos últimos meses recaiu nas possíveis regras temporárias que iriam ser estabelecidas pela FIFA[11], como remédio transitório ao conflito armado e estado de guerra que interveio diretamente na carreira de tantos atletas e clubes ucranianos e russos[12].
Na busca com uma solução imediata, a FIFA editou o anexo 7 do RSTP[13] e estabeleceu novas regras exclusivas para atletas que estivessem atuando na Rússia e na Ucrânia, adotando alterações temporárias em seus regulamentos.
Pelas novas regras a transferência internacional de jogadores de nacionalidade ucraniana, permitiu que eles atletas pudessem fazer transferências para equipes de outros países mesmo que as janelas de contratações fechadas na Europa. Os jogadores ucranianos podem ser registrados em outro clube, mesmo que esse período de registro seja encerrado na associação do clube em que pretendem se registrar.
Para os contratos de trabalho ativos entre clubes ucranianos e atletas ou treinadores estrangeiros, se estabeleceu a previsão de suspensão automática até 30/06/2022, salvo se as partes não tenham acordado outros termos. Já relacionado aos contratos de trabalho ativos entre clubes russos e atletas ou treinadores estrangeiros, resta a possiblidade de suspensão unilateral, pelo atleta ou treinador, até 30/06/2022, salvo se as partes não tenham acordado outros termos.
Os atletas ou treinadores que optarem pela suspensão e firmarem novos vínculos com outros clubes não violarão qualquer normativa, por força do artigo 4, anexo 7 do RSTP.
Para máxima proteção dos sujeitos envolvidos, diante do estado de emergência, a FIFA determinou também a possibilidade de atletas menores de 18 (dezoito) anos, residentes em território ucraniano, poderem se registrar em um novo clube estrangeiro, autorizados de forma análoga as condições previstas no artigo 19, parágrafo 2º, inciso “d” do RSTP.
O atleta, que estivesse nas condições acima mencionadas, poderia obter registro em até, no máximo, 4 (quatro) clubes na temporada, possuindo condição de jogo apenas por 3 (três) desses clubes. Nesse sentido, a FIFA autorizou que os registros desses atletas pudessem acontecer fora da janela de transferência internacional, desde que se efetivassem até a data de 07/04/2022.
Aos clubes restou a possibilidade de registrarem até, no máximo, 2 (dois) atletas profissionais beneficiados com essas exceções, sem a incidência de qualquer débito a título de Indenização de Formação.
As novas normativas servem de exemplo para o papel da FIFA na proteção do mercado, das pessoas e do esporte. Desde as transformações políticas enfrentadas pela entidade nos últimos dez anos, o Sistema de Registros e Transferências de Atletas passou por mudanças, inovações e adaptações.
Certo é que não estamos tratando de um sistema sem defeitos, mas, indubitavelmente, do modelo mais eficaz e globalizado dentre as entidades do esporte mundial. O mercado indica o caminho, a FIFA assume a responsabilidade de regulamentar o ideal. Mesmo que ainda utópico, é possível trilhar os caminhos para alcançar as soluções imediatas e suficientes à nível global.
Diante dessas alterações, forçoso concluir que a FIFA e suas normas estão avançando e se modernizando, de acordo com as necessidades do Sistema e do mercado do futebol, para sedimentar um bom caminho e dar os próximos passos com equilíbrio e segurança, perpetuando o diálogo e o processo como pilares do futuro do futebol.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade dos autores deste texto.
[1] Advogado. Vice-presidente da Federação Paulista de Futebol. Mestre em Derecho Deportivo pela Universidad de Lleida e INEFC, na Espanha. Pós-graduado em Administração e Marketing Esportivo, em Direito e Processo Civil, em Gestão Esportiva e em Direito Desportivo. Ex-presidente, Conselheiro e Colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, membro da Academia Nacional de Direito Desportivo.
[2] Advogada da Federação Paulista de Futebol. Mestre em Direito Internacional Desportivo pelo ISDE Law & Business School – Madrid/ESP. Pós-Graduada em Direito Digital na Faculdade Baiana de Direito. Membro e colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDDJ)
[3] https://www.fifa.com/legal/education/flar/football-law-annual-review-2022
[4] CHAMELETTE, Mariana. https://medium.com/labjorfaap/guerra-entre-r%C3%BAssia-e-ucr%C3%A2nia-afeta-o-esporte-ao-redor-do-mundo-307e0b5f3af9
[5] https://www.gazetaesportiva.com/campeonatos/eliminatorias-europa/repescagem-das-eliminatorias-marca-retorno-de-capacidade-maxima-nos-estadios-da-italia/
[6]https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/5308258/chelsea-proibido-de-contratar-tem-41-emprestados-para-chamar-de-volta-do-irmao-de-hazard-a-tres-brasileiros
[7] https://www.fifa.com/legal/education/flar/football-law-annual-review-2022
[8] https://www.terra.com.br/esportes/futebol/internacional/fifa-impoe-novas-regras-para-limitar-emprestimo-de-atletas,43978ede5e32832c469b1d5e240bd89dzwe23r28.html
[9] https://digitalhub.fifa.com/m/32b24e7ecdce9c39/original/-FLAR-2022-Master-presentation-Day-1.pdf
[10] https://digitalhub.fifa.com/m/32b24e7ecdce9c39/original/-FLAR-2022-Master-presentation-Day-1.pdf
[11] Outras nuances do conflito, foram bem exploradas no artigo “Rússia E Ucrânia: A Geopolítica Nas 4 Linhas” de autoria da advogada Giulianna Selingardi: https://ibdd.com.br/russia-e-ucrania-a-geopolitica-nas-4-linhas/
[12] https://www.fifa.com/about-fifa/organisation/fifa-council/media-releases/fifa-adopts-temporary-employment-and-registration-rules-to-address-several
[13] https://digitalhub.fifa.com/m/1b47c74a7d44a9b5/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-March-2022.pdf
Acompanhe o podcast em: https://open.spotify.com/episode/2SmAmVzJZ8Kj6nT0Rnn7vO