Alexandre Miguel Mestre
Se há “berço” que os Gregos sempre reivindicaram é o da democracia. Percebe-se perfeitamente. É um orgulho e um legado Grego a que devemos prestar tributo e ser gratos. Mas já não se percebe tanto que no actual cenário de crise esse argumento sirva uma lógica de apropriação, pelo Governo Grego, numa espécie de “cartão de visita” exclusivo que pretende ser um argumento negocial. É que, na prática, como que se desvirtua e desvaloriza um legado tão importante.
Os “berços” devem, fundamentalmente, servir não para se invocar numa lógica de extrema vaidade, senão mesmo de superioridade, mas sim para orgulhosamente deles se tirar um proveito colectivo, um ensinamento para todos os “herdeiros”, sem excepção. A começar, no caso concreto, pelos próprios Gregos: Os “Pais” da democracia têm uma especial responsabilidade de a cumprir e fazer cumprir.
Serve este intróito para lembrar um outro “berço” dos Gregos, ao qual nos devemos rambém render, mas que não tem sido lembrado no presente contexto: aos Gregos devemos a criação dos Jogos Olímpicos da Antiguidade (JOA), cujo início remonta ao ano de 776 a.c, realizados na cidade de Olímpia. E se grandes ensinamentos esse momento trouxe à Grécia e ao Mundo, um há que, a meu ver, poderia e deveria ser hoje evocado e, mais importante, seguido pelos Gregos: o estrito cumprimento das regras, numa lógica de igualdade de oportunidades. Os “Pais” dos JOA têm aqui, novamente, uma especial responsabilidade.
Importa não esquecer que os JOA eram preparados, organizados e realizados no quadro de um escrupuloso cumprimento de regras. Tal circunstância pode explicar-se pelo facto de, à época, a unidade cultural da civilização grega se ancorar no grande significado conferido a princípios morais e sociais e a regras, escritas ou não escritas, universalmente aceites. Essa âncora civilizacional era também a âncora dos JOA: o respeito pelo indivíduo, pela sua individualidade, mas também pela sua inserção num contexto colectivo e societário; a proclamação e defesa de valores como a virtude, a tolerância, a honestidade, a justiça, a equidade. Com pedagogia, Ética e Moral.
Os políticos e os legisladores gregos estavam bem cientes dos valores e das bases do desporto: as competições entre atletas e as discussões em torno de diferentes concepções filosóficas tinham um denominador comum: vencer o oponente de forma honesta, dominando-o sempre por meios justos e correctos. Não admira, portanto, que Platão e Aristóteles tenham sido grandes atletas.
Ds regras dos JOA, que se atribuem a Herakles, ressalto aqui o seu fito primeiro: o de assegurar uma igualdade de oportunidade entre todos os atletas concorrentes. A todos os atletas se exigia o estrito cumprimento de igual prazo obrigatório de treino prévio em Olímpia (10 meses), quer quando realizado a título individual, quer quando todos os atletas treinavam juntos, concretamente no mês e meio que antecedia a realização do evento. Até a própria alimentação fornecida era igual para todos os atletas.
Os “cânones” ou “Leis Fundamentais de Olímpia” (“Leis Olímpicas”; “Regulamentos Olímpicos” e “Normas da competição”), conexos com a elegibilidade para participar nos JOA e com a participação na competição propriamente dita, eram mesmo para cumprir. Aliás, o “Juramento Olímpico”, que Pierre de Coubertin “repescou” em 1920, e que a Carta Olímpica ainda prescreve como obrigação de cumprimento pelos atletas, nasceu mesmo nos JOA. Um compromisso público e solene dos atletas de virem a respeitar e acatar as regras. E todos os atletas, em igualdade de circunstâncias, se submetiam ao veredicto dos árbitros, oshellanodikes (“juízes dos gregos”). Até a violação da Trégua Olímpica foi severamente castigada. E as sanções, já devidamente graduadas consoante a gravidade da infracção em causa, com quatro naturezas distintas – políticas, económicas, desportivas e corporais –, assentavam na lógica de maior punição para quem considerasse a vitória como mais importante do que o cumprimento das regras.
Aqui chegados, cabe perguntar: por que razão não evocam também os Gregos a “paternidade” dos JOA? Seria útil. Para todos. As regras do Jogo são para cumprir, enquanto não forem alteradas – pela maioria ou unanimidade democrática e legalmente consagradas. No “jogo” da Zona Euro alinham 18 equipas. E esse jogo só faz sentido se houver um estrito cumprimento das regras, no respeito pelo princípio da igualdade. De outra forma há batota. E quem é batoteiro, não deve jogar. Como na Antiguidade Clássica… Grega.
Fonte: sabado.pt