OS EFEITOS DA REGULAMENTAÇÃO DAS APOSTAS NO BRASIL PARA A DESTINAÇÃO DE RECURSOS ÀS ENTIDADES ESPORTIVAS E ATLETAS
José Francisco C. Manssur
Sócio de CSMV – Advogados
I – Introdução – Apostas em resultados esportivos no Brasil e no Mundo
Apostar em resultados de eventos esportivos é uma prática secular em diversos países do mundo, ampla e tradicionalmente abraçada pelos brasileiros.
O Decreto-Lei nº 594, de 27 de maio de 1969, possibilitou a exploração estatal desse gosto nacional, instituindo a Loteria Esportiva Federal, aquela na qual o apostador dava seu palpite sobre partidas de futebol e venciam o concurso os bilhetes com maior número de acertos, muito conhecida especialmente nos anos 1970 e 1980.
Por décadas, os brasileiros ligaram a TV nas noites de domingo para acompanhar os resultados das partidas do concurso, ilustrado com o desenho de uma zebra que se manifestava sempre que algum resultado muito fora do prognóstico acontecia, gritando “deu zebra!”
Os prêmios da Loteria Esportiva eram parrudos. Quando alguém aparecia na vizinhança com abruptos e ostensivos sinais exteriores de riqueza, se usava perguntar, ironicamente, se aquela pessoa havia “feito os 13 pontos na Loteria Esportiva”.
No Mundo e no Brasil, organizações criminosas atuaram e corromperam atletas e árbitros envolvidos nas competições, com o objetivo de manipular os resultados de partidas da Loteria, para obtenção de receitas indevidas.
Nenhuma norma referente à regulamentação da Loteria Esportiva no Brasil previu qualquer tipo de contrapartida aos clubes pelo uso de suas propriedades – nome e símbolos. A exploração estatal da modalidade lotérica, certamente, justificou a inexistência, ao que se pôde pesquisar com as ferramentas atuais, de qualquer pleito dos clubes nesse sentido.
II – A legalização das apostas por quota fixa e a ausência da regulamentação determinadas pela Lei 13.756/2018
Em 2018, motivado especialmente pela necessidade de geração de novos recursos, o Governo Federal tomou a iniciativa de propor ao Congresso a edição da Lei que veio a ter a numeração 13.756/2018, que previu a exploração onerosa, pela iniciativa privada, das chamadas loterias por quota fixa, que, segundo o texto legal ainda em vigor: “consiste em sistema de apostas relativas a eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento de efetivação da aposta, quanto o apostador pode ganhar em caso de acerto do prognóstico.”
A Lei 13.756/2018 observou fenômeno mundial, já presente no Brasil, por meio do qual operadores de apostas oferecem aos consumidores a possibilidade de apostas em eventos esportivos, utilizando-se das facilidades tecnológicas atuais, como no caso, no qual o apostador tem acesso por meio, muitas vezes, do telefone celular que carregamos hoje como se fossem extensões de nossas mãos, a um extenso card de eventos esportivos, das mais diversas modalidades, nos quais pode palpitar sobre os resultados concorrendo ao recebimento de premiação.
A legalização da exploração privada das apostas em eventos reais de temática esportiva no Brasil se deu a partir da entrada em vigor da Lei 13.756/2018.
Essa mesma norma determinou ao Ministério da Fazenda o dever de regulamentar as apostas por quota fixa no prazo de 2 anos contados da sua edição, prorrogáveis por mais 2 anos, para que fossem tratados temas, tais como: (i) forma de pagamento das apostas e recebimento dos prêmios; (ii) recolhimento dos tributos devidos e das destinações – inclusive aquelas voltadas para segurança pública que motivaram a edição da Lei – fossem percebidos pelo Estado; (iii) mecanismos de combate à fraude, abusos de publicidade e práticas irresponsáveis; (iv) combate à utilização das apostas para lavagem de dinheiro e outros ilícitos; (v) medidas para prevenção e enfrentamento do vício em apostas, entre outros.
Até o ano de 2023, o Governo Federal não se desincumbiu de tal dever.
Em contrapartida o volume de apostas em sites e aplicativos feitas por brasileiros cresceu barbaramente. O volume de recursos movimentados pelas apostas no Brasil entre 2018 e 2023 pode ter atingido centenas de bilhões de reais, e sequer é possível ter precisão nos números, diante da inexistência de um mercado regulado.
Entre 2018 e 2023, não houve recolhimento de tributos pelo segmento, ao contrário do que acontece em praticamente todos os setores produtivos – alimentos, vestuário, maquinário e etc. Não houve enfrentamento do uso de apostas por quota fixa para ocultação de outros ilícitos, a partir de mecanismos como a lavagem de dinheiro. Não houve publicação de normas de “jogo responsável”, a fim de proporcionar a fiscalização de eventuais fraudes, propaganda enganosa e participação de menores de idade. Não foram estabelecidas políticas de enfrentamento ao vício em jogo, que cresce preocupantemente. Enfim, nesse período, mercado cresceu de maneira “selvagem” em ambiente não regulado.
No âmbito esportivo, surgiram novos e cada vez mais frequentes casos de manipulação de resultados esportivos. Não que a manipulação de resultados tivesse “surgido” a partir da previsão legal sobre apostas por quota fixa dada em 2018. Houve escândalos anteriores e já mencionamos anteriormente. Entretanto, o crescimento abissal das apostas e “pulverização” do acesso, sem a edição de normas específicas de controle e fiscalização, aumentaram o volume de casos e o envolvimento de atletas.
Porém, fundamental destacar, para fins do objeto do presente texto, que a despeito de a Lei 13.756/2018 ter determinado que as entidades esportivas e atletas cujas propriedades fossem utilizadas para divulgação e execução das apostas em eventos esportivos tivessem direito ao recebimento de contrapartida pelo uso, na forma de destinação expressamente prevista em Lei, as entidades esportivas e atletas, mesmo depois de 2018, jamais receberam qualquer tipo de remuneração em contrapartida à exploração de seus bens intangíveis pelos sites, aplicativos e modos físicos de aposta.
Tal fato também se dá em consequência da ausência de regulamentação específica.
III – As condições para regulação das destinações às entidades esportivas e atletas dadas pela Lei 14.790/2023
A entrada em vigor da Lei 14.790, de 29 de dezembro de 2023, trouxe os princípios básicos e fundamentais da necessária regulamentação das apostas esportivas e jogos on line no Brasil.
Os temas acima destacados, externalidades negativas não enfrentadas em face da ausência da regulamentação anterior, foram endereçados pela Lei 14.790/2023, cuja iniciativa na forma de Projeto de Lei, foi do Ministério da Fazenda, em atenção ao disposto na Lei 13.756/2018, tendo tramitado junto ao Congresso Nacional conforme determina expressamente a Constituição Federal.
O repasse da contrapartida às entidades esportivas e atletas pelo uso de suas propriedades intelectuais nas apostas em eventos esportivos também foi tratado na Lei 14.790/2023.
As normas de tal destinação estão reguladas em dispositivos do artigo 51 da Lei 14.790/2023, naquilo em que modificaram o sistema e os percentuais previstos na Lei 13.756/2018 e acrescentaram novas disposições.
O primeiro dispositivo a ser mencionado é o artigo 30, §1-A, que dispõe sobre o percentual do valor a ser atribuído às destinações, do montante do chamado GGR (Gross Gaming Revenue), sigla em inglês que se refere ao faturamento das operadoras após o pagamento dos prêmios e tributos, nos seguintes termos:
“§ 1º-A Do produto da arrecadação após a dedução das importâncias de que tratam os incisos III e V do caput deste artigo, 88% (oitenta e oito por cento) serão destinados à cobertura de despesas de custeio e manutenção do agente operador da loteria de apostas de quota fixa e demais jogos de apostas, excetuadas as modalidades lotéricas previstas nesta Lei, e 12% (doze por cento) terão as seguintes destinações:”(n.g.)
Do valor total de 12% de destinações, a “área do esporte” receberá 36%, dos quais, 7,30% serão atribuídos ao valor de contrapartida a entidades esportivas e atletas pelo uso de seus nomes, marcas, símbolos e propriedades intelectuais:
“III – 36% (trinta e seis por cento) para a área do esporte, por meio da seguinte decomposição:
- a) 7,30% (sete inteiros e trinta centésimos por cento) às entidades do Sistema Nacional do Esporte, observado o disposto no 11 da Lei nº 14.597, de 14 de junho de 2023 (Lei Geral do Esporte), e aos atletas brasileiros ou vinculados a organizações de prática esportiva sediada no País, em contrapartida ao uso de suas denominações, seus apelidos esportivos, suas imagens, suas marcas, seus emblemas, seus hinos, seus símbolos e similares para divulgação e execução da loteria de apostas de quota fixa;”
Os parágrafos 6º, 7º e 8º do mesmo artigo trazem normativos fundamentais para o entendimento da questão do pagamento da contrapartida a atletas e entidades esportivas pela exploração de suas propriedades nas apostas esportivas:
“ 6º – A regulamentação de que trata o § 3º do art. 29 desta Lei estabelecerá a forma e o processo pelos quais serão concedidas autorizações para que todos os agentes operadores da modalidade lotérica de apostas de quota fixa façam uso:
I – da imagem, do nome ou do apelido desportivo e dos demais direitos de propriedade intelectual dos atletas; e
II – das denominações, das marcas, dos emblemas, dos hinos, dos símbolos e similares das organizações esportivas.
- 7º A destinação de que trata a alínea a do inciso III do § 1º-A deste artigo será revertida, na forma estabelecida pelo regulamento:
I – às organizações de prática desportiva sediadas no País e aos atletas brasileiros a elas vinculadas, nas hipóteses em que seu nome, apelido, imagem e demais direitos de propriedade intelectual forem expressamente objeto de aposta; ou
II – à organização nacional de administração da modalidade de que tratar o evento, quando os participantes não integrarem o Sistema Nacional do Esporte.
- 8º Os repasses de que tratam os incisos I, II, III, V, VI, VIII e IX do § 1º-A deste artigo serão apurados e recolhidos pelos agentes operadores, mensalmente, na forma estabelecida pela regulamentação de que trata o § 3º do art. 29 desta Lei.”
O primeiro ponto diz respeito à necessidade de regulamentação pelo Ministério da Fazenda da forma pela qual os operadores serão autorizados a utilizarem as propriedades de entidades esportivas e atletas para as apostas, conforme o parágrafo 6º.
O parágrafo 7º, II, traz dispositivo bastante relevante e que poderá gerar ainda mais fomento ao esporte nacional, ao prever que, se as apostas forem feitas em eventos esportivos que envolvam entidades que “não integrarem o Sistema Nacional do Esporte”, os repasses de contrapartida deverão ser feitos em favor da organização brasileira de administração da modalidade em âmbito nacional
Assim, nesse caso, as apostas em eventos internacionais, como no caso de uma partida de futebol envolvendo Barcelona x Real Madri válida pela La Liga, um jogo de basquete da NBA ou no vencedor de uma prova de Fórmula 1, reverterão as destinações previstas acima em favor das entidades nacionais de administração das modalidades em questão, no caso o futebol, o basquete e o automobilismo.
Já o parágrafo 8º acima prevê a obrigação do operador de apurar o valor – com base nos percentuais acima mencionados – e realizar os recolhimentos em favor das entidades esportivas e atletas.
IV – CONCLUSÃO – Necessidade de portarias específicas para regulamentação e efetivo recebimento das destinações a entidades esportivas e atletas
Os dispositivos acima citados representam grande avanço para regulamentação dos repasses a entidades esportivas e atletas dos valores de contrapartida pelo uso de seus nomes e símbolos nas apostas esportivas.
Porém, os próprios parágrafos 6º e 7º do artigo 30-A da Lei 13.756/2018, conforme redação dada pela Lei 14.790/2023, mencionam a necessidade de regulamentação mais detalhada para que o repasse seja feito em valor correto, observando os requisitos legais e chegando às entidades e atletas destinatários.
Com efeito, fundamental destacar que atletas e entidades esportivas têm a prerrogativa de autorizarem, ou não, o uso de seus nomes e propriedades em apostas esportivas. Questões relacionadas ao posicionamento de mercado e questões morais/religiosas são, e devem ser, respeitadas, observando a prerrogativa constitucional de cada um sobre o uso e disposição de suas propriedades intelectuais da maneira que melhor lhe aprouver.
Então, cabe, primeiramente ao Governo Federal, entendemos que por meio de procedimento a ser instaurado pelo Ministério do Esporte, obter as efetivas autorizações das entidades e atletas para uso de suas propriedades. As entidades e atletas que concederem tal autorização, para além de permitirem o uso de suas propriedades, estarão aptas ao recebimento da destinação legal. De outra parte, a utilização de nomes e símbolos de entidades e atletas que não tiverem concedido autorização para tanto deve ser coibida nos termos da legislação, com vistas à proteção dos direitos individuais.
O segundo dado fundamental, esse a ser fornecido e mantido atualizado pelo Ministério da Fazenda, diz respeito à lista de operadores autorizados a operarem no Brasil, conforme a Lei 14.790/2023 e portarias que regulam a autorização dos operadores. Somente estes, logicamente, poderão fazer uso das propriedades das entidades esportivas e atletas e, em contrapartida, realizarem o pagamento dos repasses.
Somente a partir da definição clara dos agentes envolvidos – operadores autorizados e entidades/atletas aptos ao recebimento – poderão ser estabelecidos os critérios para apuração dos valores, forma de pagamento pelos operadores e, fundamental, mecanismos para que tais valores cheguem aos seus legítimos destinatários, no caso, entidades esportivas e atletas que concordaram em autorizar o uso de suas marcas.
O cálculo dos valores a serem repassados, a nosso ver, deve levar em consideração a proporcionalidade de apostas recebidas pelas duas equipes envolvidas em determinada competição esportiva, no caso de prognóstico de resultado. Do valor total das apostas recebidas em determinada partida ou competição, cada operador deverá calcular o percentual conforme definido em Lei e explicado acima
No caso de atletas, valeria o mesmo critério para resultado em esportes individuais, em apostas sobre o resultado final da prova ou competição.
Para apostas em eventos dentro da partida – como a marcação de um gol, cesta, ponto ou volta mais rápida, por exemplo – consideramos que apenas devem ser calculadas para fins de repasse de destinação as apostas em “eventos positivos”. O recebimento de percentual de destinação por “eventos negativos” – como aplicação de penalidade ou cartão – deve ser evitado a fim da preservação da integridade esportiva.
Somos favoráveis ao entendimento que, para sanidade do mercado, todos os operadores autorizados a atuarem no Brasil devem ter acesso irrestrito a todas as entidades e atletas que tiverem concordado com o uso de suas marcas, sem que sejam válidas cláusulas contratuais de exclusividade entre entidades/atletas e bettings.
A partir da definição de tais critérios, as obrigações a serem tomadas para o recolhimento das destinações e repasse às entidades e atletas também devem estar detalhadas em regulamentação específica. O operador deve ter clareza sobre como e para quem pagar, e as entidades e atletas sobre como e de quem irão receber.
Em suma, tendo em vista o aumento exponencial das apostas no Brasil, é de se considerar, como justa e importante para o fomento do esporte no País, a regulamentação do pagamento das destinações dirigidas a entidades esportivas e atletas como contrapartida pela utilização de suas propriedades em todos os meios nos quais forem exploradas as apostas por quota fixa em eventos reais de temática esportiva e jogos on line.