Maria Gabriela Junqueira
Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD.
Há mais de 70 anos, durante uma Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), foi adotada e proclamada a Declaração Universal de Direitos Humanos¹, que foi, inclusive, assinada pelo Brasil na mesma data. Em seu artigo de nº 19, a Declaração traz o seguinte texto: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Diante disso, o Brasil se comprometeu expressamente a observar os direitos ali descritos, dentre eles o da liberdade de expressão, como direito fundamental. Ocorre que apenas com a promulgação da Constituição Federal de 1988, e seu movimento de redemocratização, é que o Brasil passou a de fato tratar a liberdade de expressão como um direito fundamental, descrito em seu artigo 5º, IV.
Assim como a Constituição Federal está para um Estado, a Carta Olímpica está para os Jogos Olímpicos, de maneira que os preceitos e regras ali estabelecidos devem ser seguidos por todos aqueles que se submeterem a ela e optarem por participar do evento esportivo.
Em um caminho contrário à DUDH, a Carta Olímpica² em sua Regra nº 50, item 02 traz limitações à liberdade de expressão, nos seguintes termos: “Não será permitida dentro das instalações Olímpicas qualquer demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial”. E ainda, o item 01 prevê que o descumprimento da regra comina na desqualificação do indivíduo, sendo que as decisões da Comissão Executiva do Comitê Olímpico Internacional são finais, ou seja, sem instância superior³.
Analisando os dois cenários, a grande questão a ser suscitada aqui é sobre a tentativa de compatibilização entre o Direito Estatal e o Direito Olímpico, uma vez que há de um lado o direito de o indivíduo não ser impedido de se exprimir, bem como por outro lado há o regramento que visa resguardar a intenção esportiva do evento.
O grande desafio é, portanto, entender qual limitação será considerada aceitável para que não se perca a essência esportiva dos Jogos Olímpicos, mas também como agir para que o direito fundamental à liberdade de expressão seja garantido aos atletas e membros do evento.
Para melhor entender a questão, cabe uma análise da ratio da Regra nº 50, item 02 da Carta Olímpica, que no entendimento do professor Alexandre Miguel Mestre trata-se de uma proteção aos Jogos Olímpicos para que não sirvam de tribuna para propagandas de ordem política, religiosa ou racial. E continua: “Um evento como os JO não pode ser usado, manipulado ou instrumentalizado para veicular ideias, opiniões, pensamentos, pontos de vista, convicções, críticas, tomadas de posição, juízos de valor sobre assuntos que em nada têm a ver com o evento em si, que não o esqueçamos, é, um evento desportivo”[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4].
Portanto, segundo esta análise, a intenção da regra foi evitar que os Jogos Olímpicos virassem palanque de discussões desconectadas do verdadeiro intuito do evento, no caso, o esporte.
Vale ressaltar, entretanto, que todos os integrantes envolvidos no evento possuem sua própria história com traços e as vezes pinturas inteiras recheadas de questões sociais, raciais e políticas, de modo que não há como simplesmente desconectar as vertentes existentes em um ser humano, minimizando seu direito de expressar essa história e suas lutas.
E ainda, há a necessidade de enxergar que, principalmente, os atletas possuem uma representatividade altamente significativa na sociedade, o que torna praticamente impossível a despolitização dessa discussão no esporte.
Em que pese os fatos trazidos, também é importante olhar para a liberdade de expressão sob a perspectiva do direito de terceiro, ou seja, o limite da sua liberdade diante do início do direito de outrem. Por conseguinte, não há como negar que será necessária a imposição de alguns limites, visando justamente garantir o direito de outro indivíduo.
O professor Alexandre Miguel Mestre ressalta, entretanto, a importância de que a interpretação de um caso de exceção ao direito fundamental, ou seja, no caso de imposição de limites ao direito de liberdade de expressão, isso seja feito de forma restritiva[5], se limitando ao sentido da norma.
No que tange especificamente ao Jogos Olímpicos, há de se ressaltar que todo o regramento, bem como os atos realizados no evento, devem estar em consonância com os Princípios Fundamentais do Olimpismo, que são dentre outros a promoção de uma sociedade pacífica e que vise a preservação da dignidade humana, a não discriminação, a união dos povos, a amizade e a solidariedade entre atletas e países.
Já há, portanto, limites que deverão necessariamente serem colocados, como a não tolerância à discursos de ódio, racismo, falas e gestos preconceituosos etc., uma vez que ferem veementemente os princípios já citados.
Trazendo a discussão para um cenário ainda mais atual, em junho de 2020, o movimento Black Lives Matter[6], nos Estados Unidos, ganhou força diante da brutalidade da morte de George Floyd e Breonna Taylor, reforçando questões raciais e de violência no país. Esse movimento é de grande valia e importância para a discussão, pois grandes nomes do esporte se posicionaram, liderando, inclusive, boicotes ao campeonato como forma de protesto e busca por mudanças.
Nomes como Lebron James, Colin Kaepernick, Megan Rapinoe, Lewis Hamilton e até mesmo Vinicius Junior, tiveram papeis fundamentais nesse movimento, levando a discussão ao nível esportivo e além. Mas, um dos principais nomes que movimentaram a discussão da liberdade de expressão dos atletas foi a Global Athlete (Movimento Internacional dos Atletas) que pressionou o Comitê Olímpico Internacional a rever a regra após uma declaração do presidente do COI[7], Thomas Bach, afirmando que puniria os atletas que utilizassem os Jogos Olímpicos para protestar contra a morte de George Floyd.
Impulsionados por movimentos como esse, o COI lançou, em outubro de 2020, uma pesquisa para discutir alterações na Regra nº 50, buscando mais flexibilidade, bem como entender a opinião dos envolvidos.
Para o Dr. Wladymir Camargos[8], a lei esportiva sofre de um “déficit democrático” e é necessário lembrar que os atletas fazem parte da cadeia associativa do esporte e por isso precisam ter voz nas discussões, inclusive sobre as regras.
Mais uma vez o debate se mostra necessário e complexo, sendo a concordância prática entre as normativas, o caminho aparentemente menos tortuoso na busca pela plenitude dos direitos fundamentais e o ímpeto esportivo do evento. Sobre o assunto, a Dra. Ana Paula Terra diz[9]: “O objetivo da regra não foi proibir a liberdade de expressão, mas seu conteúdo tem essa consequência. Não considero que a regra deva ser abolida, mas adequada aos novos tempos em que o atleta é conhecido por sua performance esportiva, mas a usa para promover causas e ideias. Assim, acredito que a regra deveria conter uma ressalva que ligasse a liberdade de expressão à competição, justamente os valores olímpicos. Crenças e agendas que fossem, ao contrário, racistas, a favor do nazismo, não deveriam ser permitidas, justamente por não combinarem com o espírito de união pregado pelo Olimpismo. Esse é o cuidado”.
Então, ainda que o intuito da Carta Olímpica seja manter a neutralidade do evento esportivo, há de se ressaltar que não há sentido na proibição de manifestações que reforcem os princípios estabelecidos nela, como por exemplo a amizade, a compreensão mútua, a igualdade, a solidariedade e o “fair play” (jogo limpo)[10].
Diante disso, o que se pode definir é que a Regra nº 50 precisa ser lida em consonância com a Declaração Universal de Direitos Fundamentais, bem como com os Princípios Fundamentais do Olimpismo, buscando um ponto de equilíbrio entre eles, ou seja, a concordância prática dos regramentos envolvidos na questão.
O desafio realmente continua sendo encontrar esses limites aceitáveis a serem impostos pelo COI, na balança entre a neutralidade e o objetivo esportivo dos Jogos Olímpicos, mas sem coibir totalmente a expressão de assuntos tão atuais e suas reverberações na vida de milhares de pessoas pelos grandes protagonistas do evento.
A expectativa fica para que tal impasse seja debatido e decidido com a agilidade e importância necessária, lembrando sempre que o esporte é instrumento de mudanças sociais e não pode simplesmente ter o seu lado político ignorado em prol do lado exclusivamente esportivo.
¹ Biblioteca Virtual de Direitos Humanos, USP. Declaração Universal de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html#:~:text=em%2010%20de%20dezembro%20de,pelo%20Brasil%20na%20mesma%20data. Acesso em: 04.04.2021.
² Olympic Charter. Disponível em: https://stillmed.olympic.org/media/Document%20Library/OlympicOrg/General/EN-Olympic-Charter.pdf#_ga=2.248657799.1871592072.1592319729-1875299761.158381469. Acesso em: 04.04.2021
³ MESTRE, ALEXANDRE MIGUEL. Direito e Jogos Olímpicos. Coimbra: Almedina, p. 152, 2008.
[4] MESTRE, ALEXANDRE MIGUEL. Direito e Jogos Olímpicos. Coimbra: Almedina, p. 153, 2008.
[5] MESTRE, ALEXANDRE MIGUEL. Direito e Jogos Olímpicos. Coimbra: Almedina, p. 154, 2008.
[6] BARROS, Beline Nogueira. “Black Lives Matter”: e o engajamento dos atletas nas causas sociais no Brasil. Disponível em: https://ibdd.com.br/black-lives-matter-e-o-engajamento-dos-atletas-nas-causas-sociais-no-brasil/. Acesso em: 04.04.2021.
[7] COCCETRONE, André. Alteração na Regra 50 da Carta Olímpica poderá trazer mudança histórica para o esporte. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/alteracao-na-regra-50-da-carta-olimpica-podera-trazer-mudanca-historica-para-o-esporte/. Acesso em: 04.04.2021.
[8] COCCETRONE, André. Alteração na Regra 50 da Carta Olímpica poderá trazer mudança histórica para o esporte. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/alteracao-na-regra-50-da-carta-olimpica-podera-trazer-mudanca-historica-para-o-esporte/. Acesso em: 04.04.2021.
[9] COCCETRONE, André. Alteração na Regra 50 da Carta Olímpica poderá trazer mudança histórica para o esporte. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/alteracao-na-regra-50-da-carta-olimpica-podera-trazer-mudanca-historica-para-o-esporte/. Acesso em: 04.04.2021.
[10] O Olimpismo. Disponível em: https://www.cob.org.br/pt/cob/movimento-olimpico/o-olimpismo. Acesso em: 04.04.2021.
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