Polêmica no ar. RSR e Adicional Noturno para Atletas. O que pensar?

Cristiano Augusto Rodrigues Possídio¹

Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

Os resultados de dois julgamentos de recursos interpostos no âmbito do TRT da 2ª Região, relativos a ações trabalhistas movidas pelos atletas Maicon contra o São Paulo² e Paulo André versus Corinthians³, movimentaram a pauta de debates nas redes sociais e fóruns virtuais nos últimos dias. Tais discussões jurídicas de certa forma acabaram animando um pouco esses enfadonhos, porém necessários, momentos de isolamento social; e digo animar, obviamente no sentido de que toda polêmica que atrai argumentações mais “calientes” e eloquentes, de lado a lado, trazem em si efeitos geralmente positivos e propositivos, além de sufragar reflexões importantes para o presente e o futuro – caso colhidos no mais alto nível de civilidade e respeito, como tem acontecido, via de regra.

Não se objetiva aqui expor os atletas que manejaram a Justiça do Trabalho dentro do inalienável prisma do direito de ação em busca do deferimento de verbas que julgavam possuir. Estavam eles exercendo uma regra constitucional própria da cidadania e isso deve ser sempre respeitado. Propõe-se, nesta breve coluna, uma análise circunstanciada e à luz dos princípios e da realidade da execução dos contratos de trabalho desportivos no país, acerca da regra do repouso semanal remunerado, insculpido no art. 28, §4º, IV[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], da Lei 9.615/98 e, no caso do adicional noturno, verificar se os atletas fazem, de fato, jus ao pagamento, quando jogarem partidas designadas ou que ultrapassarem às 22 horas.

Antes de me debruçar especificamente sobre os dois institutos é preciso fazer um esclarecimento e um registro. Esclarecer que é totalmente desarrazoado falar na impossibilidade da realização de jogos aos domingos, a partir de decisões que deferiram o pagamento do repouso semanal remunerado supostamente suprimido. O próprio inciso IV, do §4º, do art. 28, da Lei Pelé cuida de estabelecer a total compatibilidade do sistema, quando assegura que o descanso, preferencialmente, deva ser concedido após os jogos em finais de semana, o que, mutatis mutandis, obviamente admite partidas designadas em tais circunstâncias. Essa discussão, portanto, revela-se totalmente anacrônica e o próprio acórdão da ação movida pelo atleta Paulo André contra o Corinthians cuida de estabelecer que o fundamento do deferimento do pagamento do RSR supostamente suprimido, naquele caso, não decorreu da prestação de serviços aos domingos, todavia da hipotética ausência de folgas compensatórias ou da existência de trabalho realizado nos dias que deveriam ter sido destinados ao descanso.

Registrar, em seguida, que nenhuma norma de direito desportivo pode ser interpretada sem considerar a especialidade e natureza do trabalho prestado e que integra o escopo da chamada “indústria do entretenimento”, inclusive no aspecto da designação de partidas para os domingos. Jogadores de futebol – verdadeiros “artistas da bola” – geralmente se apresentam no palco dos jogos em horários distintos daqueles destinados ao labor dos trabalhadores em geral e possuem uma preparação especialíssima, antes e durante o decorrer das temporadas. Aqueles que nos brindam com suas genialidades no campo da cultura, da música, dos esportes e das artes nos teatros, palcos, estádios, ginásios, shows e no circo o fazem à noite, durante a semana ou até durante o dia, quando as apresentações coincidem com feriados; todavia, com maior regularidade e frequência nos finais de semana.

É nessa linha de pensamento e raciocínio que se deve partir a interpretação da Lei Geral Desportiva, especialmente o seu art. 28, §4º, incisos I, III e IV[5], objeto deste “bate papo”. Não por outra razão, o legislador entendeu por excluir acréscimos remuneratórios decorrentes da concentração (máxima de três dias, desde que tenham jogos programados), viagens, pré-temporada e a própria participação do atleta em partida, exceto se houver previsão contratual noutro sentido.

Importante pontuar que o legislador concedeu liberalidade aos atores sociais no momento da celebração do contrato; não excluiu a possibilidade de acréscimos, porém conferiu às partes, contratantes e contratados, o direito de, querendo, pactuarem especificamente sobre acréscimo decorrentes de viagens (diárias, por exemplo), concentração ou jogos noturnos, com previsão de adicionais propriamente ditos. Isso se dá exatamente por força da especialidade da atividade, sendo importante destacar que na esmagadora maioria das profissões não se encontrará, por exemplo, concentrações de um a três dias antes das apresentações públicas; ou trabalhos específicos de pré-temporada para que o artista da bola, no retorno de suas merecidas férias, possa retomar sua capacidade física, aeróbica, muscular e atlética em geral.

O debate, portanto, sobre o adicional noturno para atleta de futebol deve perpassar inexoravelmente pela certeza de que essa atividade integra a indústria do entretenimento e possui horários e circunstâncias especiais. Dentro desse prisma, não faria jus o atleta a qualquer adicional pela participação no jogo, ainda que a partida tenha sido designada para uma quarta-feira, às 21:45 horas (muito comum), diante do que dispõe o art. 28, §4º, III[6], da Lei Pelé.

Os colegas que defendem tese contrária argumentam que não se poderia afastar o adicional noturno em tais situações, diante da proteção constitucional do art. 7º, inciso IX[7], da CF, que consagra remuneração do trabalho noturno superior ao diurno. Por isso, entendem que o atleta faria jus ao adicional a que se refere o art. 73[8], da CLT (noturno), mesmo colidindo frontalmente com o art. 28, §4º, caput, da Lei Pelé, que repele a aplicação da legislação trabalhista geral, naquilo que lhe é incompatível e contrapõe com os princípios e regras específicas da norma desportiva, como soe ser o art. 28, §4º, incisos I e III.

O trabalho noturno, nas circunstâncias da indústria, fábricas em geral e comércio, deve possuir realmente um tratamento especial para que não ocorra uma exploração e para que se mantenha preservada a saúde do trabalhador. É indubitável que a norma jurídica possui finalidade protetiva e pedagógica, já que também onerará o empregador que insista em designar trabalhos após às 22 horas, daí porque deverá adotar medidas para conter excessos de qualquer ordem, inclusive, escalas – o que não é possível no mundo do esporte, onde o atleta só deixa de ficar à disposição para os jogos por necessidades decorrentes de suspensões disciplinares, lesões, recondicionamentos físicos ou opções da comissão técnica.

No caso dos atletas que jogam 90 (noventa) minutos de uma partida à noite, esse efeito negativo à saúde é absolutamente nenhum! Simplesmente inexistente! Ao revés, jogará minimizando os efeitos do calor e das altas temperaturas que vingam no país a maior parte do ano e em boa parte das regiões, apresentando-se em campos com públicos e pessoas assistindo sua performance presencialmente ou em milhares de lares nas transmissões, sendo visto e prospectado seu trabalho artístico sem qualquer abalo ou risco – considerando tão-somente o aspecto da prática da atividade naquele horário noturno específico.

É preciso entender que na remuneração pactuada do atleta, diante da especialidade aqui desnudada, já se deve considerar embutida a regra especial prevista na Summa Legis, afinal de contas se trata de uma exceção que, na prática, confirma a regra geral e, ainda que no direito do trabalho seja vedada a complessividade salarial, também pelo fato de receber, em diversas circunstâncias, outras verbas que integram seu plexo remuneratório cada vez que ele entra em campo, a exemplo do direito de arena e bichos em situações combinadas e específicas, o diferenciando frente aos demais trabalhadores em geral, inclusive em termos de contraprestação salarial.

Quanto ao repouso semanal remunerado é indubitável a necessidade que qualquer trabalhador possui, inclusive e principalmente para a sua segurança física e mental, gozar de 24 horas de descanso, a cada semana de labor. A grande questão em derredor da previsão do inciso IV, do §4º, do art. 28, da Lei 9.615/98 está na sua interpretação quando os clubes adotam os chamados “treinos regenerativos” – que geralmente acontecem exatamente nos dias seguintes aos jogos.

A profissão de atleta é extremamente exigente, em todos os sentidos – físico e mental. Não por acaso, boa parte dos atletas que atuam em esporte de alto rendimento têm vida laborativa curta. Um jogador de futebol, na prática, pode atuar aproximadamente por 20 (vinte) anos. Começa jovem nas categorias inferiores (de base) e, mesmo assinando o primeiro CETD aos 16 (dezesseis) anos, geralmente continua atuando em campeonatos amadores até os 18/20 anos, quando galga espaços no time profissional, jogando até 34/36 anos, em média, embora alguns atletas desafiem as estatísticas, inclusive por propensão atlética e genética, permanecendo ativos até os 40 anos.

Diante da especialidade aqui decantada, o art. 28, §4º, IV, da Lei 9.615/98 deve ser interpretado em conformidade com o disposto nos arts. 34, II e 35, II[9], do mesmo Diploma Legal, exegese muito interessante para se entender a singularidade do tema. Os dispositivos trazem os deveres dos clubes de proporcionarem todas as condições necessárias para participação do atleta nos treinos, competições e outras atividades preparatórias e instrumentais e dos atletas preservarem as condições físicas que lhes permitam participar das competições.

Quando os clubes – geralmente os mais bem organizados, portanto minoria – ao invés de simplesmente dispensarem os atletas de qualquer treinamento no dia posterior aos jogos, oferecem-lhes uma clínica de recuperação e reabilitação (chamados de “treinos regenerativos”) não estão maculando em absoluto a regra do descanso semanal, capaz de gerar reconhecimento e pagamento; estão fazendo algo obrigatório que, na prática, beneficia, e muito, os atletas profissionais – a curto, médio e longo prazos –  porque vai propiciar-lhes melhores condições não apenas de treinar e jogar normalmente no decorrer da semana, porém o de prolongar suas vidas úteis laborativas.

Enquanto o trabalhador em geral que não possui rotina algum de treinamentos, viagens e concentrações para disputas de jogos pode dispor de seu tempo da melhor maneira que lhe aprouver no descanso semanal de 24 horas, ao atleta que jogou no dia anterior estão reservados desconfortos e dores musculares que implicam na necessidade de uma reabilitação e recuperação para seu próprio bem-estar, acima de tudo. Quando o jogador participa dos “treinos regenerativos” – sessões de gelo, massagem, piscina, alongamentos etc. –  estará preservando e cumprindo o dever de se manter hígido para que esteja apto a treinar e efetivamente jogar normalmente.

Nenhum Clube, principalmente dos níveis de São Paulo e Corinthians que estão envolvidos nos casos relatados, impõe ao atleta treinar e jogar 7 (sete) dias por semana, 30 (trinta) dias por mês. Isso, na prática e dentro da própria lógica da atividade é solenemente impossível e absurdo, porque a ele interessa a preservação da higidez muscular e física do jogador para o momento principal da execução de sua arte que é o rendimento satisfatório nas partidas – à nível técnico, físico e muscular.

Dentro dessa perspectiva há de ser visto – sim – com muita preocupação as condenações em pagamento do repouso semanal remunerado supostamente suprimido em casos tais, porque, repita-se, é simplesmente inconcebível ao atleta que disputa diversos campeonatos – Corinthians e São Paulo jogam as principais competições estaduais, nacionais e internacionais, todos os anos – e dentro do nível de exigência física que o futebol impõe na atualidade, que fique por um, dois ou três anos, sem fruir repouso, inclusive a partir da consideração de ter havido efetivo trabalho e vulneração à regra legal com a adoção das clínicas de recuperação e reabilitação disponíveis e que são conhecidas como “treinos regenerativos”.

Em atenção ao honroso tempo do leitor, finalizo por aqui apenas acrescentando que o direito desportivo é fascinante não apenas porque envolve elementos mágicos do esporte que se confundem com sentimentos próprios da vida, inclusive antagônicos, a exemplo da alegria dos triunfos e frustração das derrotas. Ele é assim porque é vivaz e traz realidade tão específica que obriga a todos os intérpretes se debruçarem sobre a essência e prática na busca por saídas jurídicas e soluções com equilíbrio e bom senso para as mais diversas matérias e entendimentos divergentes que surgem ao longo do caminho.

Por isso, as palavras e ideias contidas neste singelo texto objetivam fomentar a criatividade do leitor, e críticas, inclusive em sentido diverso, serão muito bem-vindas e até necessárias, sempre tendo em mira o aprimoramento em torno da relação jurídica e contratos firmados por atletas profissionais no Brasil.

* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.


¹Advogado em Salvador. Membro do IBDD – INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DESPORTIVO. Vice-Presidente do IDDB – INSTITUTO DE DIREITO DESPORTIVO DA BAHIA. Vice-Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB-SE. Membro da Comissão de Direito Desportivo da ABRAT – ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ADVOGADOS TRABALHISTAS. Membro do IBDT – INSTITUTO BAHIANO DE DIREITO DO TRABALHO.

²Processo nº 1001389-53.2016.5.02.0004, Ac. 11ª Turma, TRT da 2ª Região

³ Processo nº 1001661-52.2014.5.02.0607, Ac. 13ª Turma, TRT da 2ª Região

[4] Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:

IV – repouso semanal remunerado de 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, preferentemente em dia subsequente à participação do atleta na partida, prova ou equivalente, quando realizada no final de semana;

[5] Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:

I – se conveniente à entidade de prática desportiva, a concentração não poderá ser superior a 3 (três) dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial, devendo o atleta ficar à disposição do empregador por ocasião da realização de competição fora da localidade onde tenha sua sede;

III – acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conforme previsão contratual;

IV – repouso semanal remunerado de 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, preferentemente em dia subsequente à participação do atleta na partida, prova ou equivalente, quando realizada no final de semana;

[6] Art. 28.  A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:

I – se conveniente à entidade de prática desportiva, a concentração não poderá ser superior a 3 (três) dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial, devendo o atleta ficar à disposição do empregador por ocasião da realização de competição fora da localidade onde tenha sua sede;

III – acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conforme previsão contratual;

[7] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno;

[8] Art. 73. Salvo nos casos de revezamento semanal ou quinzenal, o trabalho noturno terá remuneração superior a do diurno e, para esse efeito, sua remuneração terá um acréscimo de 20 % (vinte por cento), pelo menos, sobre a hora diurna. (Redação dada pelo Decreto-lei nº 9.666, de 1946)

§ 1º A hora do trabalho noturno será computada como de 52 minutos e 30 segundos

§ 2º Considera-se noturno, para os efeitos deste artigo, o trabalho executado entre as 22 horas de um dia e as 5 horas do dia seguinte.

§ 3º O acréscimo, a que se refere o presente artigo, em se tratando de empresas que não mantêm, pela natureza de suas atividades, trabalho noturno habitual, será feito, tendo em vista os quantitativos pagos por trabalhos diurnos de natureza semelhante. Em relação às empresas cujo trabalho noturno decorra da natureza de suas atividades, o aumento será calculado sobre o salário mínimo geral vigente na região, não sendo devido quando exceder desse limite, já acrescido da percentagem.

§ 4º Nos horários mistos, assim entendidos os que abrangem períodos diurnos e noturnos, aplica-se às horas de trabalho noturno o disposto neste artigo e seus parágrafos.

§ 5º Às prorrogações do trabalho noturno aplica-se o disposto neste capítulo.

[9] Art. 34. São deveres da entidade de prática desportiva empregadora, em especial: (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

II -proporcionar aos atletas profissionais as condições necessárias à participação nas competições desportivas, treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais;

Art. 35. São deveres do atleta profissional, em especial: (Redação dada pela Lei nº 9.981, de 2000)

II – preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva;

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