Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD
O Direito do Trabalho é uma ciência dinâmica, em constante mutação, que passa por um momento de efervescência e reflexão potencializadas pela pandemia do covid-19.
As sucessivas edições de Medidas Provisórias pelo Governo Federal para a proteção do mercado de trabalho movimentaram o cenário jurídico, ainda que sem implicação de ordem prática no desporto. Nem por isso ficaram de lado antigas controvérsias, que voltaram ao debate e ganharam os noticiários desportivos e jurídicos (corinthians-avisa-cbf-fpf-e-globo-que-nao-joga-mais-a-noite-e-aos-domingos)[ii], revelando a necessidade de “rediscutir a relação”, revisitar velhos e novos preceitos, à luz do cenário atual.
No campo jurídico-desportivo, para além da análise dos limites de aplicação das normas gerais da legislação trabalhista e previdenciária ao atleta, nas eventuais lacunas do regramento específico, o presente artigo se propõe a conjugar a regulamentação do regime de concentração previsto na Lei Pelé com as inovações advindas da reforma trabalhista e, não menos importante, repensar as razões que justificaram a inserção do limite semanal de 44 horas na Lei Pelé no ano de 2011, embora originariamente não constasse do PL 5186/05[iii] a limitação trazida pelo legislador.
A aplicação subsidiária da legislação ordinária (CLT) no desporto trabalhista veio a ser regulamentada de forma expressa apenas em 2011, com a entrada em vigor da Lei nº 12.395/11[iv]. Mesmo com esse vácuo anterior, não se pode negar que a aplicação subsidiária da CLT sempre foi um comando implícito, inerente, pois se ao Juiz é permitido decidir por equidade na omissão da lei, com muito mais razão lhe é legítimo recorrer à norma geral trabalhista ante o silêncio da legislação particular.
Mas é imperioso que a aplicação subsidiária se dê com parcimônia, sobretudo diante de sinais de incompatibilidade da norma geral com a natureza da atividade a ser tutelada. Ao ensejo, a jurisprudência, não de agora, vinha entendendo, em relação ao adicional noturno, que a verba não seria devida ao jogador de futebol em função da especificidade da atividade da profissão, conforme dá conta o seguinte julgado:[v]
“ATLETA PROFISSIONAL DE FUTEBOL. ADICIONAL NOTURNO. Em razão das peculiaridades do contrato de trabalhado de atleta profissional de futebol, penso que não lhe são aplicáveis as regras celetistas relativas ao adicional noturno, em face da especificidade da atividade desportiva. Recurso a que se nega provimento, no particular. (Processo: RO – 0015600-50.2009.5.06.0003 (00156-2009-003-06-00-3), Redator: Acácio Júlio Kezen Caldeira, Data de julgamento: 10/05/2011, Segunda Turma, Data de publicação: 22/05/2011)”
É verdade, entretanto, que esse debate nunca encontrou na jurisprudência um porto seguro, cumprindo-nos também expor a divergência:[vi]
“Ainda que o trabalho em período noturno seja inerente à atividade do atleta profissional, ele tem direito à percepção do adicional correspondente. Há muitas outras profissões em que o trabalho noturno é imprescindível e intrínseco ao ofício desenvolvido – como é o caso dos porteiros, vigilantes, profissionais de saúde – e tal circunstância não afasta o direito do empregado ao pagamento do adicional.
Friso que o art. 28, § 1º, da Lei 9.615/1998 prevê a aplicabilidade da legislação trabalhista aos atletas profissionais, ressalvadas as peculiaridades expressas na referida lei ou integrantes do contrato de trabalho. Lembro que o art. 73 da CLT e o art. 7º, IX, da Constituição Federal estabelecem a remuneração do trabalho noturno superior ao trabalho diurno.
Assim, as disposições do art. 35 da Lei 9.615/1998 não obstam o pagamento do adicional noturno.
(TRT-18 – RO: 0011892-06.2016.5.18.0005, Data de Julgamento: 06/02/2018, Segunda Turma; Relatora Desembargadora Iara Teixeira Rios)
A falta de uniformidade é resultado da ausência de um regramento legal específico, definindo os pontos de interseção entre a norma específica e a geral, cabendo então ao intérprete a tarefa de harmonizá-las entre si.
Mesmo nas disposições expressas da Lei Pelé é possível notar evidências de assimetria com a própria natureza da profissão, a exemplo da cizânia inerente ao limite semanal de 44 horas, o que nos leva a perquirir o verdadeiro propósito do legislador em estipular ao atleta profissional do futebol o limitador semanal anteriormente citado.
Ressalvados os entendimentos em contrário, impõe-se, sob uma interpretação lógica, reconhecer os elementos que afastam o cabimento de horas extras, remuneração em dobro pelo trabalho aos domingos e feriados, além do adicional noturno como direitos inseridos no patrimônio jurídico do atleta, pois dentre tantos outros aspectos, a própria designação das datas e horários de jogos escapam do poder de escolha do empregador.
Não se coaduna com o interesse de qualquer entidade de prática desportiva, a eventual submissão do atleta a uma exigência de trabalho após às 22:00 horas e muito menos a uma sobrecarga habitual. Essa cogitada circunstância desafia a lógica e colide com a natureza da atividade do atleta profissional, valendo lembrar os ensinamentos de Alice Monteiro de Barros:[vii]
“Embora a Constituição de 1988 assegure aos empregados urbanos e rurais jornada de 8 horas, dadas as peculiaridades que envolvem a função do atleta, entendemos que as normas a respeito de limitação de horas semanais, a partir de 26 de março de 2001, não mais serão aplicadas ao profissional do futebol.
O tratamento diferenciado a respeito das relações trabalhistas comuns se justifica em face da natureza especial dessa prestação de serviços, que consiste em uma peculiar distribuição da jornada entre partidas, treinos e excursões. Há relativamente ao atleta, nesse particular, um campo aberto que reclama atuação das normas coletivas.
Ainda que a saudosa jurista tenha considerado no seu raciocínio a ausência de disposição expressa na lei entre de 2001 a 2011, não deixou de enfatizar a influência da especificidade da profissão como um dos pilares a justificar o indeferimento de horas extraordinárias ao atleta.
A partir do advento da Lei nº 12.395/2011[viii], o quantitativo de 44 horas passou a ser disciplinado no artigo 28, § 4º, do inciso VI da Lei 9.615/98[ix], sob a intenção, ao nosso juízo, não de equiparar o contrato do atleta profissional de futebol aos contratos de trabalho dos empregados em geral, submetidos ao regime normal de duração do trabalho previsto na CLT, mas de assegurar a observância, em qualquer hipótese, como regra geral, ainda que sem aplicação prática na espécie, do limite constitucionalmente imposto. Nada além disso.
O contrato de trabalho é sinalagmático por natureza e no futebol essa característica ganha destaque e apelo. Atleta e clube assumem um protagonismo e uma responsabilidade ainda maior, pois os artigos 34, assim como o 35 da Lei Pelé[x] criam direitos e fixam obrigações recíprocas, ancoradas em propósitos convergentes. Ou seja, os objetivos do clube, de alcançar resultados esportivos no âmbito das competições convergem com os do atleta, de permanente aumento do seu valor de mercado, para futuras negociações ou para a renovação do contrato existente em melhores condições.
No plano prático, seria teratológico conceber que determinada entidade de prática desportiva vá exigir do seu atleta uma carga horária de treinos excessiva a ponto de prejudicar o seu rendimento, colocando em risco o seu principal ativo ou contribuindo para a desvalorização.
Em condições normais, no transcorrer da temporada, os atletas são submetidos a uma carga horária de treinos muito aquém das 8 horas diárias e do limite de 44 horas semanal, ainda que se considere a pré-temporada e treinamentos em dois períodos.
Essa circunstância não difere de clube para clube, de estado para estado, pois, repita-se, há um manifesto interesse comum do atleta e da entidade de prática desportiva: estabelecer uma jornada equilibrada a ponto de evitar que o jogador esteja sujeito a contusões, projetando o seu ápice técnico e físico para os momentos das disputas, dos grandes jogos, que glorificam e trazem dividendos para Clube e valorizam o jogador.
Esse interesse recíproco é da natureza do contrato de trabalho do atleta, tratando-se, portanto, de um postulado insuperável.
Pode-se concluir, por consequência, que a limitação horária do artigo 28, § 4º, inciso VI da Lei nº 9.615/98, tem sido explorada sob um viés inadequado, o mesmo ocorrendo em relação ao limite de 3 dias de concentração disciplinado pelo inciso I daquele mesmo dispositivo legal.
Mesmo na norma geral, o conceito de tempo remunerado ou à disposição passou a ter uma aplicação mais próxima ou conforme à realidade, vide a extinção das horas in itinere e a desconsideração, em regra, do tempo de troca de roupa e uniforme no ambiente de trabalho para fins remuneratórios.
Quanto à norma específica, a Lei Pelé não caracterizava como tempo à disposição os dias de concentração, até o limite de 3, que estão inseridos no dever do atleta de preservar a sua capacidade física (artigo 35 da Lei Pelé), não gerando direitos ou obrigações pecuniárias, incluindo sobre- salários, adicional noturno ou horas extras, em qualquer hipótese, ainda que porventura se entenda necessário, por circunstâncias justificadas, o aumento do período de concentração além do limite legal.
Cada vez mais, a concentração constitui uma verdadeira convenção das partes, representando um interesse mútuo direcionado à segurança do atleta e à sua adequada preparação física e psicológica às vésperas do jogo, evento que é a razão da existência do Clube e o palco onde o jogador se apresenta, se destaca e se valoriza.
A remuneração do atleta profissional de futebol decorre basicamente dos treinamentos e dos jogos, o que se adequa, como visto, ao renovado texto da CLT no tocante à configuração do tempo à disposição do empregador, reforçando assim a conclusão acerca da incompatibilidade entre a atividade do atleta e um regime de trabalho que o submeta a uma fiscalização de horário, visando a registrar a prestação de horas extras e adicional noturno.
Por analogia, se controle de horário pelo empregador não se harmoniza com o exercício das funções de um alto gestor, pela natureza do cargo, se coaduna muito menos ainda com a atividade do jogador de futebol, demonstrado, como está, que o controle da sua carga de trabalho é inversamente proporcional ao do empregado comum, na medida em que a alta performance, objetivada pelo Clube, não admite excesso de esforço físico, não se compadecendo sequer com a fixação de uma jornada regular.
Por óbvio, a edição de normas, observadas as premissas ora trazidas a debate, que estabeleçam de forma expressa e clara os direitos aplicáveis ao atleta, que especifique, no caso de atribuir algum direito, a responsabilidade pelos jogos noturnos, etc, trará uma segurança jurídica maior, equacionando o campo de interpretação.
Mas enquanto essa normatização não vem, nada impede que as partes (clubes, atletas e sindicatos) ajustem critérios remuneratórios objetivos em situações não positivadas pela legislação.
Em suma, por um lado, a aplicação subsidiária da normal geral ao desporto merece uma interpretação sistemática e razoável, que não se harmoniza com a incidência do adicional noturno e do regime de horas extraordinárias, haja vista o conceito aplicável de “tempo à disposição”, que não se confunde com os dias de concentração, e a natureza especial e peculiar dessa relação profissional que, quanto ao investimento nas condições de trabalho, na segurança e na higidez física do atleta, estabelece entre as partes, pelo mesmo interesse finalístico, uma autêntica parceria.
De outra banda, as negociações individuais e coletivas terão manifesta importância na pactuação de condições justas e proporcionais entre as partes e, ainda, para a salvaguarda do que é o mais importante, o futebol, como produto e como fundamental instrumento educativo e de integração social.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
[i] João Marcos Guimarães Siqueira – Membro filiado ao IBDD – Instituto Brasileiro de Direito Desportivo; Advogado; Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol, Procurador do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do Basquete; membro da International Sports Lawyers Association e Especialista em Direito Desportivo e do Trabalho, Sócio do Escritório Bosisio Advogados.
[ii] Disponível em: https://esportes.yahoo.com/noticias/corinthians-avisa-cbf-fpf-e-globo-que-nao-joga-mais-a-noite-e-aos-domingos-172039887.html?soc_src=social-sh&soc_trk=tw
[iii] Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=DD406217A9F1D9E3CF503D3DA29764FF.proposicoesWebExterno2?codteor=304675&filename=PL+5186/2005
[iv] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12395.htm
[v] Disponível em: https://trt-6.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/420378095/recurso-ordinario-ro-156005020095060003
[vi] Disponível em: https://pje.trt18.jus.br/consultaprocessual/detalhe-processo/0011892-06.2016.5.18.0005
[vii] BARROS, Alice Monteiro de – Contratos e Regulamentações Especiais de Trabalho: peculiaridades, aspectos controvertidos e tendências. 3a ed. São Paulo: LTr, 2008, p. 126.)
[viii] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12395.htm
[ix] Art. 28. A atividade do atleta profissional é caracterizada por remuneração pactuada em contrato especial de trabalho desportivo, firmado com entidade de prática desportiva, no qual deverá constar, obrigatoriamente: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes: (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).
VI – jornada de trabalho desportiva normal de 44 (quarenta e quatro) horas semanais. (Incluído pela Lei nº 12.395, de 2011).
[x] “Art. 34. São deveres da entidade de prática desportiva empregadora, em especial
I -registrar o contrato de trabalho do atleta profissional na entidade de administração nacional da respectiva modalidade desportiva
I – registrar o contrato especial de trabalho desportivo do atleta profissional na entidade de administração da respectiva modalidade desportiva
II -proporcionar aos atletas profissionais as condições necessárias à participação nas competições desportivas, treinos e outras atividades preparatórias ou instrumentais;
III – submeter os atletas profissionais aos exames médicos e clínicos necessários à prática desportiva.
Art. 35. São deveres do atleta profissional, em especial
I – participar dos jogos, treinos, estágios e outras sessões preparatórias de competições com a aplicação e dedicação correspondentes às suas condições psicofísicas e técnicas
II – preservar as condições físicas que lhes permitam participar das competições desportivas, submetendo-se aos exames médicos e tratamentos clínicos necessários à prática desportiva;
III – exercitar a atividade desportiva profissional de acordo com as regras da respectiva modalidade desportiva e as normas que regem a disciplina e a ética desportivas.
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