Rafael Teixeira Ramos
Coordenador Regional do IBDD
Introdução
A previsão normativa da remuneração dos praticantes desportivos profissionais extrai-se do art. 7°, da CRFB/88, arts. 457 a 467, da CLT (modificados pela Reforma Trabalhista, Lei n. 13.467/17), conjuntamente com o atual art. 31 da Lei n. 9.615/98 (art. 87, § 1° a § 5° do anteprojeto da Lei Geral do Esporte – LGE em tramitação no Congresso Nacional), pois não há título/capítulo específico da Lei Pelé regulamentando o tema.
Apenas nos dispositivos citados que tratam da rescisão indireta e outros verbetes isolados tratantes de outros institutos é que se mencionam os termos salário e remuneração (art. 28, § 4°, III, V, § 7°, § 9°, da Lei Pelé; arts. 83, § 3°, 85, caput, do projeto da LGE).
Segundo o art. 31, § 1°, da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé)/ art. 87, § 2° do projeto da LGE, as parcelas salariais componentes da remuneração atlética são: “verbas inclusas no pacto laboral, gratificações, prêmios, abono de férias, décimo terceiro salário”.
Salário produção
Segundo Mauricio Godinho Delgado há três tipos de salário: a) por unidade de tempo; b) por unidade de obra; c) por tarefa. ¹ O nomeado salário produção enquadra-se na espécie salário “por unidade de obra”, não é inconstitucional, desde que se resguarde o valor do salário mínimo mensal determinado no art. 7°, IV, VII, CRFB/88, art. 28, § 4°, Lei Pelé/ art. 82 do PLS 68/17 c/c art. 78, CLT, independendo da quantidade de produção gerida pelo empregado desportivo.²
No trabalho desportivo caracteriza o salário produção a avença entre os contraentes de uma parcela fixa e outra variável de acordo com o número de partidas, número de tempo das partidas, ou ainda, número de minutos em que o atleta disputa a competição. Ressalte-se: a
parte fixada não pode ser inferior ao mínimo constitucional e legal, sob pena de violação do patamar civilizatório mínimo, o mínimo existencial em matéria salarial laboral.³
Curioso destacar que, em países como Portugal, o Contrato Coletivo de Trabalho dos jogadores profissionais entre os respectivos sindicatos estabelece um piso salarial diferenciado para cada divisão, acima do salário mínimo lusitano.[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]
No Brasil, já se constitui costume o acerto contratual de salário por produção, mormente para atletas em fim de carreira, em que as limitações físicas não lhe permitem participar constantemente em todos os jogos ou em razão de dificuldades disciplinares (alimentação, preparação, recuperação), como o caso de Juninho Pernambucano com o Vasco da Gama e o polêmico caso do chileno Valdívia com o Palmeiras.
Pode-se questionar a constitucionalidade desta espécie salarial com base em uma das características essenciais da relação empregatícia, a alteridade (assunção dos riscos) do empregador. Nota-se, consoante o caso Valdívia, que nem sempre o atleta se agrada com tal firmamento, tanto é que o jogador não renovou o contrato posteriormente, o que, por outra via, não ocorreu no caso do Juninho Pernambucano, obtendo o encerramento da carreira no clube citado acima, com quem firmou tal avença sem nenhuma queixa.
Entende-se possível esse pacto de remuneração mista, composto de uma parcela fixa e outra variável,[5] em casos de “hipersuficiência” do empregado desportivo, como foram nos casos supramencionados, pois as parcelas fixas são muito além do salário mínimo (caso Valdívia) ou os valores por hora trabalhada são muito elevados. Embora o salário fixo fosse bem raso no caso do Juninho pernambucano, que com a sua “hipersufiência” não se submeteu ao contrato, pois na mesma época o Sporting Club do Recife ofereceu um salário fixo mais vantajoso do que o concorrente, mas o jogador não preferiu. [6]
Se puder recorrer à doutrina especializada de Albino Mendes Baptista, “o jogador arca mais ou menos com os riscos da atividade econômica desportiva”,[7] advogando a admissão de rescisão unilateral por parte do time empregador se ocorrer sua queda de divisão,[8] permitindo-se mais ainda a negociação mista do salário atlético.
Vale realçar que o legislador português permitiu desde a revogada Lei n. 28/98, em seu art. 14º/2[9], com correspondência atual no vigente art. 15º/2 da Lei n. 54/17[10], a possibilidade de diminuição do salário atlético por queda de divisão do clube empregador, ao mesmo tempo em que pela subida de série também abriu espaço para aumento salarial. Este se revela um evidente dispositivo da mitigação do princípio da assunção dos riscos (alteridade) na relação laboral desportiva em Portugal.
Apenas se entenderia inválido, inconstitucional, o barramento pela direção do clube ou comissão técnica do atleta de maneira proposital para que ele não acessasse às partidas e tivesse a remuneração compulsoriamente diminuída (art. 28, § 4°, Lei n. 9.615/98/art. 82 do PLS 68/17 c/c art. 483, g), CLT); o impedimento intencional do jogador às partidas como punição disciplinar, já que no Brasil existe possibilidade de desconto salarial por falta injustificada, mas não como sanção disciplinar, por mero assédio ou negando-lhe o direito de ocupação efetiva (arts. 28, § 4°, 34, II, III, Lei n. 9.615/98/ art. 81 do PLS 68/17 c/c art. 483, b), d), CLT).
Nada obstante, as ações supratranscritas do clube empregador, impedindo o regular trabalho do atleta configuram-se motivações para requerimento judicial de rescisão indireta, por se configurar falta grave no contrato laboral esportivo.[11]
Ressalve-se ainda, que se reconhece este tipo de remuneração mista, muito em função dos numerosos casos de hipersuficiência do atleta empregado (mitigação dos princípios da proteção e da alteridade – não enquadramento único de trabalhadores), como exceção à raiz do Direito do Trabalho, compactuando-se com a especificidade laboral esportiva.
Entretanto, se a realidade não for capaz de revelar que o jogador empregado é detentor de tal poder econômico e negocial, conforme o mencionado acima, deve-se adotar o regime jurídico laboral tradicional com toda a sua principiologia clássica. Corroborando, neste ponto, ao formulado por João Leal Amado: “É óbvio que o praticante desportivo tem um poder negocial acentuadamente superior ao do trabalhador médio, mas a sua relação com a entidade empregadora nem por isso deixa de ser marcadamente assimétrica – justificando, por esta via, uma adequada tutela por parte do ordenamento juslaboral.”[12]–[13]
No Brasil, o salário por produção (por unidade de obra/ por unidade de produção, composição mista) no contrato de trabalho desportivo somente é possível dependendo da força autônoma (hipersuficiência) do empregado esportivo, a salvaguarda do salário mínimo determinado na Lei Suprema e no diploma consolidado, bem como se não houver, por parte do empregador desportivo, possíveis abusos de direito acima descritos ou fraude na vinculação de cláusulas contratuais, impondo ao atleta profissional obrigações desproporcionais, desarrazoadas (infringentes da boa-fé objetiva negocial e contratual).
Por fim, a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/17) intenta uma abertura maior na utilização do salário por produtividade/desempenho individual em qualquer atividade trabalhista, ora através do negociado sobre o legislado, ora individualmente para os empregados hipersuficientes, conforme arts. 444, parágrafo único, 611-A, IX, da reformada CLT. No trabalho desportivo, com o impulso da aludida alteração legal, a tendência será a ampliação do quadro negocial do salário produção.
Considerações finais
Em síntese, sem a pretensão de fechar entendimentos jurisprudenciais e doutrinários a respeito da prática cotidiana no pagamento dos salários por produtividades dos jogadores empregados, contribui-se com algumas elucidações a fim de aprimorar a prevenção/ solução dos conflitos relacionados ao tema.
¹DELGADO, Mauricio Delgado. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: LTr, 2013. p. 746-750.
² Luciano Martinez em uma classificação quanto à aferição do salário interessante, dispõe: a) unidade de tempo, b) unidade de produção, c) unidade de tarefa. O referido “salário por unidade de produção” é o nomen iuris menos tradicional e até mais próximo do “salário produção”, equivalente ao clássico epíteto “salário por unidade de obra”. MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 446-450.
³ Id. ibid., 2015, p. 448.
[4] Contrato Colectivo de Trabalho entre a Liga Portuguesa de Futebol Profissiona l e o Sindicato dos Jogadores Profissionais de Futebol. Artigo 32.° Remuneração mínima
1 — Aos jogadores profissionais são asseguradas as seguintes remunerações base mínimas:
a)1.a Divisão Nacional — três vezes o salário mínimo nacional;
b)2.a Divisão de Honra — duas vezes e meia o salário mínimo nacional;
c)2.a Divisão B — duas vezes o salário mínimo nacional;
d)3.a Divisão — uma vez e meia o salário mínimo nacional.
2 — Aos jogadores profissionais com idades com-preendidas entre os 18 e 23 anos, cujos clubes tenham equipas «B», é assegurada a remuneração mínima correspondente a duas vezes o salário mínimo nacional.
3 — Os jogadores profissionais com idade inferior a 18 anos terão assegurada a remuneração de base mínima igual ao salário mínimo nacional. Sítio oficila do Sindicato do Jogadores Profissionais de Futebol de Portugal (SJPF). Disponível em: <http://sjpf.pt/?pt=contratocolectivodetrabalho>. Acesso em: 05 mai. 2017.
[5] MARTINEZ, Luciano., op. cit., 2015, p. 447-448.
[6] Sobre a hirpersuficência, admitindo-se na seara laboral desportiva a aplicação de instrumentos do neoconstitucionalismo, como a casuística, chega-se à “tese da relatividade da aponibilidade do preceito mais favorável ao clube” (mitigação ao princípio da proteção na ramificação do direito do trabalho desportivo) em a RAMOS, Rafael Teixeira. Direito desportivo trabalhista: a fluência do ordenamento do desporto na relação laboral desportiva e seus poderes disciplinares. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 144-149. Em uma ótica mais elevada da especificidade/ força autonoma do trabalhador desportivo, o não enquadramento único de trabalhadores, defendendo até um “princípio do tratamento mais favorável aos clubes”, analisar BAPTISTA, Albino Mendes. Estudos sobre o contrato de trabalho desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2006, p. 54-56., e BAPTISTA, Albino Mendes. Direito laboral desportivo. Lisboa: Quid Juris, 2003, p. 49-57. Em contraposição, assumindo a especificidade de maneira bem mais comedida – AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. Aduz-se ainda, nesta nota, que a Lei n. 13.467/17 trouxe a figura do “hipersuficiente” para possibilitar uma negociação contratual maior entre empregado e empregador diretamente, incluindo a utilização dos métodos extrajudiciais de solução de conflitos nos contratos de trabalho em geral, porém sem critérios claros e de maneira completamente equivocada, baseada apenas em piso salarial estipulado em valores baixos.
[7] Id. Ibid., 2006, p. 33.
[8] A revogada Lei n. 28/98 em seu art. 26º/1/b) ao prever a cessação do contrato por revogação – acordo das partes, em tese, permitiria essa cláusula de extinção contratual por queda de divisão (Lei do Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo e do Contrato de Formação Desportiva de Portugal) – atualmente vige a Lei n. 54/17 com o correspondente art. 23º/1/b) (Lei do Regime Jurídico do Contrato de Trabalho do Praticante Desportivo, do Contrato de Formação Desportiva e do Contrato de Representação ou Intermediação). Correspondência dos dispositivos acima no art. 28, § 5°, I, da Lei Pelé, quando subscreve “… distrato”, desde a alteração promovida pela Lei n. 12.395/11.
[9] Lei n. 28/98, art. 14º/2 – É válida a cláusula constante de contrato de trabalho desportivo que determine o aumento ou a diminuição da retribuição em caso de subida ou descida de escalão competitivo em que esteja integrada a entidade empregadora desportiva.
[10] Lei n. 54/17, art. 15º/2 – É válida a cláusula constante de contrato de trabalho desportivo que determine o aumento ou a diminuição da retribuição em caso de subida ou descida de escalão competitivo em que esteja integrada a entidade empregadora desportiva.
[11] DELGADO, Mauricio Godinho., op. cit., 2013, p. 749-750.
[12] AMADO, João Leal. Temas laborais – 2. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, 190.
[13] É certo que o contrato de trabalho desportivo é um «contrao especial de trabalho», mas, manifestamente não há especificidades que possa justificar tamanha disparidade de regimes. AMADO, João Leal. As «cláusulas de rescisão» e a comissão arbitral paritária. Desporto & Direito: revista jurídica do desporto. Coimbra: Coimbra Editora, ano I. n. 1, p. 83-93, set/dez, 2003.
Referências
AMADO, João Leal. Vinculação versus liberdade: o processo de constituição e extinção da relação laboral do praticante desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2002.
_________. Temas laborais – 2. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.
BAPTISTA, Albino Mendes. Estudos sobre o contrato de trabalho desportivo. Coimbra: Coimbra Editora, 2006.
_________. Direito laboral desportivo. Lisboa: Quid Juris, 2003.
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 12. ed. São Paulo: LTr, 2013.
MARTINEZ, Luciano. Curso de direito do trabalho. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.
RAMOS, Rafael Teixeira. Direito desportivo trabalhista: a fluência do ordenamento do desporto na relação laboral desportiva e seus poderes disciplinares. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
-Períodicos
AMADO, João Leal. As «cláusulas de rescisão» e a comissão arbitral paritária. Desporto & Direito: revista jurídica do desporto. Coimbra: Coimbra Editora, ano I. n. 1, p. 83-93, set/dez, 2003.
-Sítios da Internet
Sítio oficila do Sindicato do Jogadores Profissionais de Futebol de Portugal (SJPF). Disponível em: <http://sjpf.pt/?pt=contratocolectivodetrabalho>. Acesso em: 05 mai. 2017.
Rafael Teixeira Ramos
Mestre em Ciências Jurídico-laborais e pós-graduação em Direito do Desporto Profissional, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra/PT; Cadeira n. 48 da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD); professor em pós-graduação de Direito, Processo do Trabalho e Direito Desportivo; Conselheiro Editorial da Revista SÍNTESE Direito Desportivo – RDD; Coordenador Regional do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD); Secretário do Instituto Iberoamericano de Derecho Deportivo (IIDD); advogado.
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