Tarcísio Miranda Bresciani ¹
Membro Filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
Pretende-se com o presente artigo demonstrar o impacto social negativo e os reflexos econômicos que o imediatismo, aliado a má organização e a inaplicabilidade do §2º, do artigo 29, da Lei nº 9.615/98, geram a todos os envolvidos, direta e indiretamente, com o esporte.
A formação é caracterizada pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos, que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva.
Todos podem contribuir para o fomento da formação do atleta, porém, apenas as entidades com Certificado de Clube Formador é que usufruem dos benefícios previstos nos Regulamentos desportivos da FIFA e da CBF, os quais garantem um retorno financeiro significativo.
Antes de iniciar as considerações, trago à título de reflexão que, mesmo diante do incentivo financeiro resguardado pelos Regulamentos da FIFA e da CBF, de aproximadamente 800 (oitocentos) clubes profissionais registrados no país, apenas 39 (trinta e nove) possuem Certificado de Clube Formador (CCF), sendo 17 (dezessete) na categoria A e 22 (vinte e dois) na categoria B.
Diante destes números, surgem algumas indagações: Será que é válido investir na formação dos atletas? A formação não se dá na escola? O que será que estamos formando na base? As entidades estão formando atletas ou indivíduos? Só o talento basta? Qual a referência da nossa base de formação? Será que nossa base vem forte?
Indiscutível que, atualmente, além das dificuldades financeiras dos clubes, muitos dão preferência pelo trabalho de curto prazo, pelo imediatismo e pelo rápido retorno financeiro, não dando a devida importância para a formação do indivíduo. Hoje, o foco é o capital, ficando à margem o investimento na educação e o desenvolvimento do senso de responsabilidade do jovem, para saber como lidar com o dinheiro.
Como base dorsal deste estudo, compartilho duas teorias extraídas do livro Homo Ludens, de autoria do historiador e professor Johan Huizinga, que assim dispõe: “Segundo uma teoria, o jogo constitui uma preparação do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida dele exigirá, segundo outra, trata-se de um exercício indispensável ao indivíduo.”[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][2]
A soma dessas duas teorias poderia ser considerada como um “case” de sucesso na formação dos indivíduos/ atletas, pois a criança cresceria se deparando com as dificuldades dos jogos e saboreando os frutos das conquistas realizadas por meio de dedicação e resiliência, isso sem falar do exercício em si.
Nos termos da norma desportiva nacional, mais precisamente no artigo 29, § 4º[3], da Lei nº 9.615/1988 e no artigo 48[4] do Decreto nº 7.984/2013, está em período de formação o atleta maior de 14 (quatorze) anos e menor de 21 (vinte e um) anos, que poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem, livremente pactuada por contrato de formação sem vínculo empregatício entre as partes. Importante ressaltar que nos Regulamentos internacionais a formação desportiva é mais ampla, abrangendo os atletas entre 12 (doze) e 23 (vinte e três) anos de idade.
Do artigo 29, § 2º da Lei Pelé, extraímos que será considerada formadora aquela entidade de prática desportiva que forneça aos atletas programas de treinamento nas categorias de base e complementação educacional, além de uma série de requisitos cumulativos, no qual destacarei a alínea “c”, que traz a condição fundamental para salvação da formação, sendo ela: a garantia de assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar.
Do § 2º extraímos os referenciais pedagógicos, que se subdividem em metodológicos e sócio educativos, em que o primeiro está relacionado ao ensinamento dos aspectos da modalidade, o que ensinar, como ensinar e quando ensinar e o segundo direcionado à formação do ser humano, em que são passados os valores e comportamentos que um atleta deve ter tanto no alto rendimento quanto para sua vida pessoal.
Dificilmente as entidades formadoras focam todos os referenciais. Como muitas vezes acontece, o atleta tem os princípios da modalidade e não tem os princípios de comportamento, que é aquele atleta que não tem limite, não se adapta em viagem, mudança de cidade, mudança de país e até com mudança de relacionamento com o treinador. No mais, o salário elevado de um adolescente que não teve uma capacitação para lidar com aquela monta, acaba gerando uma percepção distorcida da realidade que é levada de maneira incorreta para formação adulta.
A falta de princípios comportamentais nos atletas do nosso país, salvo as exceções, resulta numa primeira venda de forma desvalorizada no mercado e apenas após confirmada a adaptação e o bom comportamento, passam a valer o triplo.
Como exemplo, trago o modelo de projeto do time feminino da Inglaterra, que é denominado “treinamento para atleta de alto rendimento em longo prazo”. A formação do atleta começa em média com 5 (cinco) anos e vai até os 24 (vinte quatro) anos. Até os 9 (nove) anos, ocorre a fase geral de treinamento e adaptação da idade, que é reconhecido como o 1º ano de desenvolvimento. Neste primeiro ano a base de formação está nas escolas e nos clubes. A partir dos 13 (treze) anos, a base de formação passa ser dividida entre clubes e entidade desportiva, quando serão iniciados treinamentos específicos, concomitantes a um trabalho mental, cognitivo e emocional, focado nas questões comportamentais. A partir dos 16 anos, além do treinamento específico técnico e tático, começam a lidar com rápida tomada de decisão e habilidades.
O foco deste projeto a longo prazo, realizado através de um sistema integrado, está voltado para o clube se atentar às primeiras necessidades de cada atleta e, acima de tudo, abrange um planejamento de calendários, jogos, formação e educação parental. Neste modelo de formação a longo prazo, concluiu-se que o ápice da carreira do atleta profissional acontece entre os 26/28 anos. [5]
Diferente deste modelo, no nosso país, um atleta renomado de 17/18 anos, que ainda tem uma capacidade afetiva, motora e cognitiva de um adolescente, por receber um salário elevado, acaba assumindo de forma precoce responsabilidades de um adulto. Assim, a aceleração de um processo físico, mental, afetivo e cognitivo de uma criança, acaba por resultar no envelhecimento precoce para o esporte. Neste sentido, para ilustrar a explanação trago trecho de entrevistas de atletas renomados:
“Comecei a ter alguns problemas muito fortes com o treinador. O cara tem um diamante nas mãos, o que não é normal, e é a primeira vez que ele tinha, então quer lapidar de uma forma que ninguém chegue em volta, que você nem respire. A minha psicóloga esportiva massacrava também nos trabalhos, minha família me massacrava, me senti massacrado. Quando fiz 18 anos, disse: “Sou maior de idade, agora posso decidir e não quero mais, não jogo tênis por prazer, acho um porre jogar profissionalmente, estou jogando para os outros e não tenho prazer”. Foi a gota d’água. Tinha um belo treinador, uma ótima psicóloga, um ótimo preparador físico, uma ótima família para dar respaldo, ganhava dinheiro, e mesmo assim abandonei, para ver como o negócio foi grave – ressalta Marcelo.”[6]
“Eu estava com três patrocínios, fazia propaganda, todo mundo acha lindo. Mas eu parei e percebi que não gostava de jogar tênis, não gostava da competição. Eu não percebia isso. Estava envolvido, tinha responsabilidade… Até o dia que com quase 18 anos caiu a ficha. Estava jogando pensando em todo mundo, nos pais, no treinador, nos patrocinadores, e eu mesmo estava infeliz. Parei!”[7]
“Fico feliz de ser o jogador brasileiro mais jovem em fazer o gol. É uma realização de sonho. Em relação à escola, os professores vão me entender (risos) – disse Rodrygo”[8].
“Jovem desfalca Bayern na Liga dos Campeões porque tem prova na escola”.[9]
Diante do que foi abordado, me parece óbvio que poderia surgir uma legislação com a finalidade de dar maior atenção para o lado cognitivo e afetivo, além da proteção à atividade exercida pelo atleta menor de idade. Atividade esta que não se confunde com a figura do menor aprendiz e nem com o trabalho, que são versados na Legislação Trabalhista.
Neste sentido, ao comentar o contrato desportivo português, o mestre João Leal Amado de forma brilhante pontua que a preocupação do legislador em estabelecer a idade mínima de 16 (dezesseis) anos, além do preenchimento de requisitos de escolaridade obrigatória, assume particular acuidade neste domínio, atendendo ao caráter efêmero da atividade desportiva (profissão de desgaste rápido), e consequentemente, às especiais necessidades de reconversão profissional.[10]
Por fim, creio que se as entidades desportivas mantiverem a visão da formação apenas do atleta (e não do ser-humano, de forma integral), dificilmente conseguiremos ter nosso futebol no topo do mundo novamente. Assim, ressalto a importância imensurável do investimento no processo de formação do indivíduo ao esporte, para que, além do talento, ele esteja fortalecido emocionalmente e intelectualmente, haja vista ser uma carreira célere em que o ex-atleta deverá estar apto a lidar com a vida fora dos gramados. Ademais, ao se realizar um trabalho de longo prazo na base, com a elaboração de limites e dos princípios comportamentais, o resultado será refletido na formação de uma sociedade melhor e de negociações com valores mais expressivos. Sem formação não há base, não há futebol e não há evolução da sociedade.
BIBLIOGRAFIA:
Huizinga, Johan. Homo Ludens – O jogo como elemento da cultura. 8ª Edição;
www.thefa.com › Women and Girls › LTPDGirls
AMADO, João Leal. Contrato de trabalho desportivo anotado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P.25/26;
VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. Temais atuais de Direito Desportivo. São Paulo: LTr, 2015;
BASTOS, Guilherme Augusto Caputo. Direito Desportivo. 2ª Edição Revisada. Casa da Educação Física, 2018.
[1] Advogado, sócio fundador do escritório Bresciani e Almeida, Vice Presidente da Comissão de Direito Desportivo da OAB Santos, Pós Graduado em Direito e Processo do Trabalho e Pós Graduando em Direito Desportivo pelo IIDD
[2] Huizinga, Johan. Homo Ludens – O jogo como elemento da cultura. 8ª Edição.
[3] § 4o O atleta não profissional em formação, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada mediante contrato formal, sem que seja gerado vínculo empregatício entre as partes.
[4] Art. 48. O atleta não profissional em formação, maior de quatorze e menor de vinte anos de idade, poderá receber auxílio financeiro da entidade de prática desportiva formadora, sob a forma de bolsa de aprendizagem livremente pactuada por contrato de formação desportiva, a que se refere o § 4º do art. 29 da Lei nº 9.615, de 1998, sem vínculo empregatício entre as partes
[5] www.thefa.com › Women and Girls › LTPDGirls
[6] http://sportv.globo.com/site/programas/sportv-reporter/noticia/2013/11/fenomeno-saliola-explica-por-que-deixou-o-tenis-eu-era-massacrado.html
[7] https://www.uol.com.br/esporte/tenis/ultimas-noticias/2013/10/06/prodigio-diz-que-fama-dinheiro-e-mulheres-o-fizeram-deixar-o-tenis.htm
[8] https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/rodrygo-falta-em-aula-bate-recorde-com-golaco-e-brinca-professores-vao-entender.ghtml
[9]https://www.atribuna.com.br/2.713/jovem-desfalca-bayern-na-liga-dos-campe%C3%B5es-porque-tem-prova-na-escola-1.20293
[10] AMADO, João Leal. Contrato de trabalho desportivo anotado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. P.25/26
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