Leonardo de Oliveira Maximo
Membro filiado ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo
No segundo semestre de 2020, eu estava em meio a um processo de educação executiva que tinha, como uma de suas fases, a realização de uma avaliação 360º. Pedi, assim, a uma série de colegas, funcionárias(os) e colaboradoras(es) que respondessem a um questionário anônimo que trazia, dentre suas perguntas, a seguinte: “Cite 3 coisas que o Leonardo deveria parar de fazer”.
De um total de 20 (vinte) avaliações respondidas, 6 (seis) delas – quase um terço, portanto – traziam uma recomendação para que eu parasse de falar sobre minha orientação sexual (2 – duas delas traziam a expressão “opção sexual”, o que já é um termômetro preciso do lamentável nível de familiaridade de tais pessoas com toda a questão LGBTQIA+).
O resultado me agradou, neste ponto específico? Certamente não. Mas me surpreendeu? Tampouco. Tratava-se apenas da constatação de uma verdade incontornável: o fato de que ser um profissional abertamente homossexual na convergência de dois dos universos mais homofóbicos concebíveis, Esporte e Direito, é uma afronta a um sistema inteiro configurado para excluir e oprimir pessoas LGBTQIA+.
Era também um lembrete: no país que mais mata pessoas gays, lésbicas e trans no mundo inteiro, é até suportável que você seja uma dessas anomalias – mas você não deve, em absoluto, cometer a tremenda indelicadeza de falar sobre o assunto. O ideal é que você se amolde, em completo detrimento de sua personalidade e de seu direito à vida e à dignidade, a um padrão cruel que tolera apenas gays “discretos”. E por discretos, entenda-se: aqueles que logram minimizar o contexto de sua própria existência, para torná-la mais palatável à norma.
Aos 45 anos de idade, e gozando de um status razoavelmente elevado em minha profissão – resultado de muito trabalho e do apoio de algumas pessoas hétero de rara alma – eu me pergunto todos os dias: onde estão as pessoas LGBTQIA+ no Direito Desportivo? Nos negócios do esporte? No agenciamento? Na gestão dos clubes? Nas federações? Onde estão as/os atletas abertamente gays/bissexuais?
Será que a comunidade LGQBTQIA+ realmente é tão alheia a todo o fenômeno desportivo? Tão pouco interessada no encontro do desporto com o empreendedorismo? Ou será que neste universo, assim como em tantos outros, as barreiras de entrada são praticamente intransponíveis? E a maioria das pessoas acaba optando por estar do lado de fora, ou, ainda pior, por violentar todo o seu existir e conformar-se ao papel de “discreto/a”, suprimindo um componente tão essencial à miríade humana de que somos feitos?
Estamos em pleno mês do orgulho gay, e eu vou assistindo às manifestações de apoio em redes sociais, a maioria delas de uma demagogia lastimosa: clubes, empresas, pessoas que não se importam minimamente com a causa LGBTQIA+ – que aliás escarnecem dela -, mas desejam surfar no hype do tópico, sem promover qualquer possibilidade ou desejo efetivo de mudança. Sem criar políticas de contratação e inclusão, sem alterar a cultura organizacional, sem oferecer sorte alguma de apoio real. Um post no Instagram, em junho. Para constar. E só.
Recentemente, em um grupo de estudos da USP no qual eu ministrava uma aula sobre o desporto e a comunidade LGBTQIA+, um dos alunos me perguntou se eu sofria episódios de discriminação com frequência. Expliquei a ele a sutileza da questão: sou um homem branco, de classe alta, de origem fina, de aparência razoável, poliglota, numa posição de poder dentro do universo desportivo, sócio de uma das maiores agências da América. Um dos únicos no Brasil a ter galgado tal posição, o que me alça ao incômodo lugar de exceção, e não de regra (consigo pensar em, literalmente, mais uma pessoa). E, assim, atacar-me frontalmente por ser homossexual não seria exatamente uma decisão sábia, pois uma série de vernizes (geralmente reservados às maiorias) me protege.
A violência física (e a verbal direta), portanto, praticamente não me atinge(m). Mas a simbólica me fere todos os dias. Quando ouço a risadinha de longe, a insinuação constante. Quando me dizem que sou elegante porque sou “discreto” (Deus nos livre de ter de conviver com um gay ruidoso…). Quando ouço a invariável e quase cotidiana piadinha homofóbica, dita “inocentemente” porque, afinal, é importante levar na esportiva, e o mundo do futebol “é o que é”. Quando capto o olhar de surpresa ao mencionar meu marido em uma conversa (aparentemente, além do dever de serem discretos, aos gays é vedado o direito constituir famílias). Quando leio, enfim, que um terço das pessoas com quem trabalho creem que eu que deveria “falar menos da minha opção [SIC] sexual”.
E é por isso que, em um mês destinado à celebração da diversidade, eu me pego pensando que há pouco a comemorar, e muito pelo que lutar. Há uma necessidade escandalosa, pulsante de que as pessoas LGBTQIA+ possam e devam transitar no desporto, no Direito, no ambiente que frequento diariamente. Mas não fazê-lo sendo “discretas”. Não fazê-lo com medo, com violência àquilo que são como única forma possível de inserção.
Para além da lamentação acerca do quadro amargo que pinto, fica o desafio a que clubes, federações, empresas e indivíduos criem efetivos mecanismos e políticas para introjetar valores de respeito e inclusão, franqueando à comunidade LGTBQIA+ um acesso digno e real ao rico universo do desporto enquanto fenômeno comportamental, jurídico e econômico. A mudança cultural de fato não é simples. Mas não há momento melhor que o agora para iniciá-la.
É imperativo, enfim, que o ambiente corporativo do desporto, do Direito Desportivo, dos negócios do esporte (assim como todos os outros, claro) pare de se cobrir falsamente com a bandeira do arco-íris durante um mês e passe a se vestir com mais humanidade e respeito todos os dias do ano. Até que isto ocorra, seguiremos assistindo a manifestações estéreis, oportunistas e tolas no mês de junho. E seguiremos, pobres de nós, perdendo a fantástica oportunidade de aprender com a diversidade e de crescer com a diferença.
*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do Autor deste texto.
[1] Advogado. Especialista em Direito de Empresa, Direito dos Contratos e Direito Desportivo. Mestre em Marketing for Global Business (London School of Business and Finance / University of Wales). Sócio Fundador da Movement Football Management. Chief Commercial Officer da E-Flix eSports / Netshoes Miners. Coordenador da Pós Graduação e MBA em Negócios do Esporte e Direito Desportivo da Faculdade CEDIN. Secretário Geral do IBDD. Árbitro do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem. Membro da comissão de Direito Desportivo da OAB/MG e da OAB/SP, Membro do Conselho da IBA Académie du Sport. Autor de artigos jurídicos e capítulos de livros no Brasil e no exterior, Professor em cursos de graduação, extensão e pós graduação no Brasil e no exterior, e Palestrante, já convidado pela Harvard Extension School (EUA) e pela Université Jean Moulin (França).
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