Torcedores: Sua Essencialidade e Mazelas

Julia Gelli Costa ¹

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)

 

 

São diversos os comentários acerca dos torcedores brasileiros; suas transformações e adequações ao longo do tempo; e sobretudo no que tange as TO’s – Torcidas Organizadas no âmbito do futebol.

Há quem defenda que houve uma elitização dos estádios tendo como um dos objetivos principais afastar episódios de violência das praças desportivas.

Evidente que seria uma missão impossível esgotar tal tema, mas o presente artigo propõe uma breve reflexão a respeito da existência da suposta elitização; comentários quanto a evolução dos torcedores do futebol brasileiro; e artigos do CBJD – Código Brasileiro de Justiça Desportiva que possuem correlação com as condutas das torcidas.

Nesta linha, partilho do entendimento de que eventual encarecimento de ingressos para partidas de futebol no Brasil não teve como objetivo uma busca pela elitização da modalidade, mas é a consequência natural da modernização dos estádios, das estruturas, e da própria crise econômica que assola o país.

Com a diminuição da capacidade econômica de diversos setores, inegável que a assiduidade e comparecimento de torcedores nas hoje, em sua maioria, denominadas “arenas de futebol” foi afetada.Em que pese os estádios continuarem possuindo diversos setores com preços e meios de aquisição diferenciados, tais como gradações de planos de sócios voltados única e exclusivamente para o futebol, convênios, etc.

Portanto, corroboro com a percepção daqueles que compreendem essa evolução como o caminho inverso. Ou seja: Os clubes tentam uma exploração da marca, apesar de ainda muito aquém do que poderiam, de forma extremamente conservadora, mas dentre as medidas usualmente tomadas tem-se por exemplo a modernização das instalações.Investimentos esses que encarecem o produto, gerando além da necessidade de capitalização e maior ativação junto aos torcedores, a busca também por relevantes patrocínios,que por sua vez, em regra possuem os dados quantitativos de engajamento da respectiva torcida como um dos pilares para negociações.

Deste cenário cíclico vê-se a disponibilização de diferentes programas de vantagens para sócios, mas que ainda carecem de melhor exploração, como por exemplo trabalhar a ida do torcedor brasileiro ao estádio para que deixe de ser limitada a assistir os 90 minutos da partida e se torne uma experiência a ser vivenciada, com ativações e maior engajamento com a Agremiação. Entretanto, apenas será possível com o melhor desenvolvimento dos centenários clubes e a valorização do futebol brasileiro enquanto produto. Conclui-se então que a denominada elitização é na verdade a busca por modernização e evolução do futebol como business, realidade ainda distante, mas espelhada em modelos europeus; almejando a possibilidade de setores inteiros vendidos de forma anual; e sucesso comparável com o das ligas internacionais tais como UEFA, NBA, NFL, etc.

Assim, errôneo o pensamento de que a suposta elitização dos estádios objetivaria inibir a violência de torcidas. Ora, além de não razoável soa até discriminatório o entendimento de que a condição socioeconômica e o caráter violento estejam vinculados. Pois é evidente que adita “elite” não será necessariamente menos ou mais violenta que pessoas de menor poder aquisitivo. Outra falácia é a de que torcidas são compostas por pessoas menos elitizadas.

Na visão do Professor Buarque de Hollanda², a identificação entre os clubes; respectivas torcidas e principais jogadores comum dos anos 80 e tão rara na atualidade, é um dos fatores que intensificam o tom das cobranças por parte das organizadas quando da insatisfação em relação ao desempenho dos times.

Compreendemos então que o problema da violência nas torcidas é acima de tudo cultural. Já seria endêmico, porém ainda é potencializado pelos problemas sociais e aumento da violência de uma forma geral no país.

Fato é, que o cidadão comum, torcedor membro de TO ou não, possui o entendimento equivocado de que o ambiente futebolístico, pela inerente competitividade e comum rivalidade, autorizaria enxergarmos com normalidade falas mais exaltadas; xingamentos; reclamações acintosas; condutas violentas; agressividade; etc.Recente matéria jornalística³ noticiou que uma mulher fora condenada por ameaçar e empurrar um árbitro ofendendo-o com as expressões “ladrão” e “negro sujo”, porém felizmente a Exma. Desembargadora Relatora, Dra. Cinthia Schaefer, se pronunciou no sentido de que a alegação da apelante de que “as ameaças foram proferidas no calor do momento” não é fundamentação que permita a absolvição da acusada.

De igual modo há quem entenda que “faz parte do futebol” cânticos de torcidas com expressões homofóbicas. As alegações são diversas desde “querem acabar com o futebol” até “a conotação nesse meio deve ser relativizada”.

Contudo a sociedade evoluiu e não há mais espaço para esse tipo de conduta sem implicar em consequências. A exemplo temos as punições aplicadas à CBF tanto pela FIFA durante jogos das eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018, como pela Conmebol por gritos homofóbicos da torcida na Copa América realizada recentemente no Brasil em 2019, sob enquadramento nos artigos 8 e 14 do Regulamento de Disciplina da Conmebol.[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4]

O STJD do futebol também emitiu a Recomendação nº 01/2019 considerando a R. Decisão proferida pelo STF que enquadrou a homofobia como tipo penal definido na Lei do Racismo (nº 7.716/89); a circular nº 1682/19 da FIFA que determinou às Federações e árbitros membros o combate a comportamentos discriminatórios durante as partidas de futebol; e o “Guia de la FIFA de buenas práticas en matéria de diversidad y lucha contra la discriminación”, orientando aos árbitros, auxiliares, oficiais e delegados das partidas que relatem formalmente a eventual ocorrência de manifestações preconceituosas e de injúria em decorrência de opção sexual por torcedores ou partícipes das competições; e aos Clubes e Federações para que passassem a realizar campanhas educativas com o fim de evitar a ocorrência de infrações desta natureza.[5]

Os únicos 2 (dois) artigos do CBJD que versam também sobre possíveis condutas praticadas por torcedores são os 213[6] e 243-G[7]. Enquanto o 213 atribui aos Clubes a responsabilidade objetiva sobre as infrações específicas cometidas pelas torcidas, o parágrafo 2º do artigo243-G estabelece uma punição aos torcedores identificados de proibição de ingresso nas praças desportivas pelo prazo mínimo de 720 dias.

Todavia, já fora o entendimento unânime do E. Pleno do STJD do Futebol quando do julgamento em grau recursal (26/09/2014) do leading casede injúria racial sofrida pelo goleiro conhecido como “Aranha” (processo nº 211/2014), portanto com composição diversa da atual,que a carência de citação e intimação dos torcedores identificados e, por consequência oportunidade de produção de defesa, obstaria a aplicação efetiva da penalidade de proibição de acesso aos eventos desportivos.

E enaltecendo a primazia dos princípios do contraditório e da ampla defesa, é que alguns juristas com atuação no meio dos Tribunais Desportivos entendem como necessária a condução de forma a possibilitar a efetiva punição também dos torcedores identificados nos episódios de violência e cometimento de atos infracionais, e não apenas a responsabilidade objetiva das Agremiações, mediante a individualização da pena do torcedor perante a Justiça Desportiva, quando viável diante da identificação.

Neste sentido, muito se questiona acerca da possibilidade de extinção das torcidas organizadas. Contudo, possuo a visão particular que esta não seria sequer uma alternativa, na medida em que não possui aplicabilidade prática, bem como seria extinguir parte importante do que é o futebol brasileiro.

Não obstante, admitir a extinção seria validar a total incompetência da sociedade. Entretanto é importante que as Torcidas Organizadas sejam de fato compreendidas como parte integrante do Sistema Nacional do Desporto, na forma preconizada pelo artigo 1º, parágrafo 1º, inciso VII[8], do CBJD,por conseguinte, passível de ser objetivamente responsabilizada.

Pois na busca por uma solução não basta que os integrantes mesmo após punição retornem aos estádios sem qualquer controle do impedimento, ou que as torcidas organizadas punidas tenham como pena apenas a vedação do comparecimento na forma caracterizada. A questão problemática não são as torcidas organizadas em si, mas os criminosos que disfarçados de torcedores comprometem a segurança de toda a coletividade que anseia pelo espetáculo esportivo. Existem torcedores criminosos como existem religiosos; advogados; e criminosos de todas as demais profissões e meios.

Ocorre que por uma lamentável cultura histórica e o fato de que o futebol envolve o emocional coletivo, mexendo com a paixão dos torcedores, o senso comum possui o falho entendimento de que há espaço para condutas agressivas e passionais no âmbito do futebol.

Portanto extremamente necessária a urgente conscientização de que o futebol brasileiro precisa e merece evoluir nesse ponto, tornando um ambiente mais propício às famílias e torcedores de verdade, que comparecem ao estádio para torcer de fato, consumir o produto futebol e entretenimento, tendo a experiência do evento, sem medo da violência, independente se dérbi.

A violência nos estádios é então derivada do entendimento equivocado de que o ambiente futebol permite determinadas atitudes e posturas, bem como ao fato de que existem criminosos que não são torcedores, mas utilizam como pretenso disfarce a condição de membros das torcidas. Pessoas que comparecem ao estádio premeditando violência e não assistir o espetáculo ou motivar o time. É difícil lidar com o fato de que poucos são os que compreendem que o futebol tem como condicionante para a existência a disputa, competição. Contudo a rivalidade entre times deve ser leal e pautada pelo fair play, espírito esportivo, princípio elencado pelo inciso XVIII do artigo 2º do CBJD.

Sobretudo, já que um depende do outro, isto é: a existência de um adversário competitivo é essencial para a valorização do campeonato e, por consequência, do eventual título. A torcida deveria seguir a mesma linha. Compreender a importância das demais, por reconhecer a necessidade de comparação para haver destaque. Contudo o despreparo dos mecanismos de combate a violência bem como a aceitação passiva de parte da sociedade em achar faz parte do meio futebolístico, infelizmente corroboram com a violência nos estádios. As agremiações podem fazer mais pela causa, como campanhas educativas e divulgação de eventuais penas alternativas referentes ao artigo 213.

Há quem defenda que a torcida única é a solução. Porém inequivocamente perde muito o espetáculo, soando até como uma espécie de reconhecimento de incapacidade de enfrentar e resolver o problema. Sob outro prisma, o entendimento oposto aduz que a negativa de torcida única representa um pensamento utópico.

O combate a violência nas arenas impõe coragem para enfrentamento da realidade de que não é porque a violência persiste no meio que não possa ser combatida. Mal comparando, temos a corrupção para a política do país. Então não importa se o torcedor reconhecidamente violento é assíduo aos estádios ou ligado politicamente ao clube, ele deve ser severamente punido. O futebol pode inclusive ser muito melhor explorado enquanto cultura tanto pelo Estado como pelo clube, e assim gerar maiores recursos. Além de ser uma ferramenta de desenvolvimento social eficaz. Sendo assim é necessário envidar esforços no aprimoramento dos mecanismos de prevenção e coerção da violência vinculada a modalidade.


¹Coordenadora Regional do IBDD – Rio de Janeiro; Advogada especialista em Direto Desportivo e Direito do Trabalho; Procuradora do TJD-AD – Tribunal de Justiça Desportiva Antidopagem; Subprocuradora-Geral do STJD do Futebol; Auditora no STJD do Voleibol e Auditora no STJD dos Desportos Aquáticos.

²https://www.mg.superesportes.com.br/app/noticias/futebol/futebol-nacional/2019/10/07/noticia_futebol_nacional,2553282/com-mudanca-cultural-e-organizadas-na-ilegalidade-protestos-violentos.shtml

³https://www.uol.com.br/esporte/futsal/ultimas-noticias/2019/10/08/mulher-e-condenada-por-empurrar-arbitro-e-chamar-de-ladrao-e-negro-sujo.amp.htm

[4]ARTIGO 8º – RESPONSABILIDADE OBJETIVA DOS CLUBES EASSOCIAÇÕES MEMBRO -1. As Associações Membro e os clubes são responsáveis pelo comportamento de seus jogadores, oficiais, membros, público assistente, torcida assim como de qualquer outra pessoa que exerça ou possa exercer em seu nome qualquer função por ocasião dos preparativos, organização ou de realização de uma partida de futebol, seja de caráter oficial ou amistoso. E ARTIGO 14 – DISCRIMINAÇÃO E COMPORTAMENTOS SIMILARES – 2. Qualquer Associação Membro ou clube cuja torcida incorra em comportamentos descritos no parágrafo anterior será sancionado com uma multa de pelo menos TRÊS MIL DÓLARES AMERICANOS (USD 3.000).

[5]https://www.stjd.org.br/noticias/stjd-emite-recomendacao-contra-homofobia

[6]Art. 213. Deixar de tomar providências capazes de prevenir e reprimir:

§ 2º Caso a desordem, invasão ou lançamento de objeto seja feito pela torcida da entidade adversária, tanto a entidade mandante como a entidade adversária serão puníveis, mas somente quando comprovado que também contribuíram para o fato.

[7]Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:

§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.

[8]“VII – todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas.”

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