Dossiê PLACAR resultou em investigações no Congresso Nacional, mas crianças e adolescentes seguem à mercê de abusadores nas categorias de base
Há um ano, PLACAR publicava uma extensa reportagem em que foram levantados 22 casos de abuso sexual nas categorias de base do futebol brasileiro no período de dois anos.
O dossiê motivou investigações parlamentares nas CPI’s do Tráfico de Pessoas e da Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. Entretanto, as medidas para coibir os abusos ainda não saíram do papel. Os episódios de violência sexual contra crianças e adolescentes em clubes e escolinhas seguem se alastrando pelo Brasil.
Desde a publicação do dossiê, em maio de 2013, PLACAR contabilizou outros 15 casos, cinco deles ocorridos este ano. No mais recente, em São Bernardo do Campo, região metropolitana de São Paulo, um técnico é acusado de manter 32 adolescentes sob cárcere privado e ter abusado sexualmente de alguns deles.
Vítimas e familiares resistem em denunciar os abusos por causa do trauma. Como não há dados oficiais sobre violência sexual no futebol, as autoridades sugerem que o número de casos deva ser bem maior, incluindo jovens promessas de clubes grandes.
A cultura de culpabilização das vítimas também contribui para a cortina de silêncio e a impunidade dos abusadores. Quando há denúncia ou um abuso é descoberto, a polícia costuma responsabilizar pais e familiares por negligência. Na verdade, eles são vítimas de um golpe cruel de abusadores, marcado por coação, estelionato, falsidade ideológica e tráfico de pessoas.
Segundo o deputado federal Arnaldo Jordy (PPS-PA), presidente da CPI do Tráfico, a comissão está em fase final de trabalho e deve encaminhar um relatório sobre abusos sexuais no futebol às autoridades em aproximadamente 15 dias.
Jordy argumenta que, ao longo das audiências da CPI, clubes e Confederação Brasileira de Futebol (CBF) evitaram se comprometer com medidas para fiscalizar as categorias de base e afastar abusadores. “A CBF é totalmente alheia ao assunto. Mas um dos objetivos da comissão é responsabilizá-la por esses casos de abuso, assim como os clubes”, diz.
De acordo com um estudo do Unicef, publicado em abril, em parceria com o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan, o futebol brasileiro expõe jovens a riscos como profissionalização precoce, exploração e abuso sexual e afastamento da escola, sobretudo com a proximidade do Mundial 2014 – uma isca potencial para abusadores diante de seus alvos.
“Entre os jovens e adultos entrevistados na pesquisa que norteou este trabalho, há grandes expectativas em relação à Copa. Todos vislumbram um aumento de interesse e expectativas de crianças e adolescentes em relação ao futebol”, conclui o estudo.
FUTEBOL, FOME E FRAUDE
No fim de março, a polícia de São Paulo prendeu o suposto treinador Daniel Magnum da Costa, de 28 anos. Ele mantinha 32 garotos, com idade entre 11 e 22 anos, confinados em um alojamento em São Bernardo do Campo.
Recrutados em cidades do Nordeste, a maioria de Fortaleza (CE), para jogar no Santa Fé Futebol Clube, eles alegam que chegaram a passar mais de um dia inteiro sem alimentação. Os pais desembolsavam cerca de 2 500 reais pela viagem, além de 350 reais de mensalidade.
Apesar de negar os abusos, Daniel está sendo indiciado por estelionato, maus tratos, estupro de vulnerável (alguns meninos o acusam de ter apalpado e mordido seus órgãos genitais) e falsificação de documento público (ele fabricava “gatos” adulterando a idade dos atletas). Ainda pode responder pelo crime de tráfico de pessoas.
“Ele tinha mania de bater na nossa cara”, conta L.A., 16 anos, um dos garotos assediados. “Vinha pegando, fazendo coisas que eu não queria. Quando pedia pra parar, ele ameaçava dizendo que ia me tirar do time. Insisti com minha mãe para pagar a viagem, porque meu sonho era ser jogador. Mas acabei passando fome e humilhação. É o maior arrependimento da minha vida.”
PRAGA SEM CONTROLE
As regiões Norte e Nordeste do país são as que mais registram casos de exploração e abuso sexual relacionados ao futebol e as maiores fontes do tráfico de pessoas no Brasil.
Em Aracaju (SE), PLACAR registrou o caso mais chocante do dossiê, ocorrido em fevereiro de 2013. O falso olheiro Reginaldo Pinheiro, o Doutor, encarcerou 14 garotos em um apartamento e os dopava antes de cometer os abusos. Seu clube de fachada era o Confiança, da capital sergipana.
Em depoimento à CPI, Pinheiro, que foi preso em flagrante no alojamento, disse que dois homens da Bahia e de Goiás o ajudavam na captação de jogadores em outros estados. Em liberdade, nenhum deles responde ao processo, assim como nenhum dirigente do Confiança.
O fator impunidade e a falta de medidas para combater os crimes são agravantes. Também no ano passado, em Fortaleza, o técnico Rogério Rodrigues foi detido por abusar e produzir material pornográfico de atletas entre 11 e 13 anos. Ele havia sido preso pelo mesmo motivo em 2001, mas se manteve na ativa.
No Amazonas, deputados instalaram uma comissão especial para investigar uma quadrilha de exploração sexual de jogadores que agia tanto em equipes de Manaus quanto no interior do estado.
Além da capital amazonense e São José dos Campos, outras três cidades foram assoladas por escândalos de abuso sexual no futebol desde o início deste ano: Boa Vista (RR), Paiçandu (PR) e Redenção (PA), onde um falso empresário sequestrou um adolescente de 15 anos e perambulou por quatro estados durante quase um ano até o garoto conseguir fugir no Maranhão, em janeiro.
Marcilon Lobo, suspeito pelo sequestro e por outros crimes de estelionato, segue foragido.