UMA ANÁLISE SINTÉTICA SOBRE A EXCLUSÃO DO MÉTODO DE TRAINING COMPENSATION NO FUTEBOL FEMININO

Luiza Rosa Moreira de Castilho

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Quando dizemos que o direito é feito por homens, é disso que estamos falando: especificidades femininas que são ignoradas por não serem vivenciadas por quem está no poder – logo, são inviabilizadas. Leis pretensamente neutras não são neutras.[ii]

Em 2001, a FIFA lançou o então novo Regulations on the Status and Transfer of Players – RSTP[iii], acompanhado da Circular n. 769[iv], que criou o método chamado Training Compensation ouIndenização por Formação. Nesse primeiro momento, motivada por casos como Jean-Marc Bosman x RFC Liège[v] e Olympique Lyonnais SASP x Olivier Bernard and Newcastle United Football Club[vi], a entidade máxima do futebol criou um preceito para compensar os clubes pela formação de um atleta, encorajando o investimento e a continuidade na atuação desse importante processo de desenvolvimento.

Levando em conta que o período de formação de um atleta se dá entre os 12 e os 23 anos de idade, a FIFA considera que todos os clubes que participam das temporadas que compreendem esse período possuem a prerrogativa de receber uma compensação por essa participação. Portanto, o Training Compensation é devido ao clube formador quando o jogador é registrado como profissional pela primeira vez e cada vez que o atleta for transferido internacionalmente até o final da temporada do seu 23º aniversário.

A CBF no Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol – RNRTAF[vii] também prevê a Indenização por Formação para clubes que possuem o Certificado de Clube Formador – CCF, seguindo os requisitos previstos na Resolução da Presidência – RDP[viii] vigente. No caso, entende-se que a certificação atual não faz qualquer diferenciação de gênero, sendo válida para a categoria de base feminina e masculina.

É notável que os valores recebidos pelas agremiações a título de Indenização por Formação nacional ou internacional, até então estritamente relacionados ao futebol masculino, são extremamente relevantes para as finanças desses clubes. E assim, por mérito, cumpre-se o papel fundamental da ferramenta, instigando o investimento na formação de novos atletas.

Para um método implementado há mais de vinte anos, sopesando a evolução tecnológica, é evidente que nem todas as metas traçadas alcançaram sua plenitude. Uma das principais preocupações dos envolvidos é o déficit dos pagamentos pelo Mecanismo de Solidariedade e Training Compensation em colação aos montantes realmente devidos. Então, com a decisão do Conselho da FIFA em 2018, a entidade iniciou o projeto de adoção do sistema da Clearing House[ix] para garantir aos clubes o recebimento dos valores correspondentes a essas Training Rewards, com base (em regra) no registro no passaporte do atleta.

Pouco antes disso, em 2017, a FIFA desencadeou a mudança no olhar institucional relacionado ao futebol feminino através da instalação de diretrizes[x] a serem reproduzidas pela própria entidade e por suas federações membro. A positivação dos direitos laborais das atletas mulheres e o guia de licenciamento de clubes para a categoria feminina são exemplos de medidas regulamentares que fazem parte dessa transformação.

Outra providência que alterou a caminhada do mercado foi a obrigatoriedade do registro das transferências internacionais das jogadoras através do Transfer Match System – TMS[xi], a disposição oportuniza maior transparência nas negociações e a cobrança de Mecanismo de Solidariedade em caso de transferência onerosa e, além de outros, possibilita a confecção de relatórios periódicos sobre essas transferências internacionais, incentivando o estudo e o entendimento sobre a evolução e as necessidades da categoria.

Por outro lado, algumas das regras excludentes e outras que parecem neutras, estão mascaradas de proteção e observância aos princípios de igualdade, mas trazem argumentos perfunctórios quando, na verdade, tudo leva a crer que o embasamento é lamentavelmente pautado pelo gênero.

De acordo com o Irish Times[xii], um dos pressupostos contrários à exigência de Training Compensation para o futebol feminino é que a capacidade de negociação dos salários das atletas poderia ser afetada, já que o novo clube teria que incluir o valor no custo total da transação. David O’Connor, executivo do Shelbourne, demonstrou o orgulho e o interesse no desenvolvimento da carreira das jogadoras formadas pelo clube, ao mesmo passo que entende que os clubes devem ser recompensados para que continuem participando desse processo. Nesse sentido, muitos dos clubes da Liga Irlandesa Feminina que perderam suas atletas para a Super Liga Feminina estão, de certa forma, pressionando a Federação Irlandesa de Futebol para provocar o tema perante a FIFA.

Ora, se o grande propósito do Training Compensation é incentivar o recrutamento e treinamento de jovens atletas, esse não seria exatamente o caso de aplicação ao contexto do futebol feminino atual?

Num primeiro momento, verificamos que a indenização por formação relativa à categoria já é possível no Brasil quando o clube for detentor do CCF, mas para haver a justaposição é necessária a assinatura de um contrato de formação seguida de um contrato de trabalho especial desportivo.

Até agora não é expressiva a quantidade de contratos profissionais firmados no futebol feminino brasileiro, mas o número tem crescido de maneira arrastada e gradual. Recentemente, o contrato da atleta Johnson do Toledo/Ouro Verde, e destaque da Seleção Brasileira Sub17, se tornou notícia[xiii] em razão do alto valor da cláusula indenizatória para o padrão da categoria. Dispositivos como esse têm como propósito a limitação da mobilidade, prestigiando os valores operados no mercado por meio da criação de um standard.

Ocorre que são raras as ocasiões em que as transferências no futebol feminino são onerosas, inclusive o relatório[xiv] da FIFA aponta que 87,3% das 1.304 transferências realizadas em 2021 foram de atletas livres, sendo que mais da metade possuía contrato prévio terminado por três principais motivos: contrato expirado, acordo entre as partes ou quebra unilateral.

Por essa razão, há uma sintonia no iludido entendimento de que ao dirimir o custo da transferência se abre mais espaço para movimentar o mercado de trabalho. Em contraste, essa menor onerosidade acaba por obstruir a perspectiva de monetização, já que a transferência, como dito antes, é um dos fatores cruciais para a geração de receitas no futebol. Logo, a sedução do mercado é afastada quando se retira o elemento que desperta o interesse e que é basilar para a atuação no plano esportivo.

O próprio relatório da FIFA tem demonstrado que, ao longo dos anos e desde a implementação do TMS, o número de negociações acompanhadas de transfer fee no futebol feminino tem dilatado. Se em 2019 não se chegava a um montante de 1 milhão de dólares, em 2021 foram manejados mais de 2 milhões de dólares em 58 transferências, (frisa-se) em meio a uma crise mundial. Paralelamente, há que se considerar que 62,7% das novas cessões completadas em 2021 guardam duração de apenas um ano. No futebol masculino, a extensão do contrato está altamente relacionada ao valor pago pela transferência – num contexto geral, a despeito da média ser de um ano, quando se trata de valores acima de 1 milhão de dólares, grande parte dos contratos tende a ser de três anos ou mais.

Com efeito, tanto em 2021 quanto em janeiro de 2022, quase que a totalidade das dispendiosas transferências no futebol feminino, foram de atletas entre 18 e 29 anos e, por isso, o recorte da idade se faz essencial na avaliação do quadro pragmático em que essas futebolistas estão inseridas. Pois bem, o snapshot[xv] do corrente ano apresentou que das 257 transferências concluídas, 46,7% foram de jogadoras de 23 anos ou menos, envolvendo aproximadamente 420 mil dólares. No futebol masculino, em que pese as quantias operadas sejam incomparáveis, as transferências de atletas entre 18 e 23 anos de idade representaram 42,8% das 3.534 transferências totais, traduzindo uma proporção muito similar ao futebol feminino.

Outra situação amplamente aventada no mencionado documento é que a nacionalidade brasileira fica em segundo lugar na quantidade de transferências internacionais de atletas mulheres em 2021, já no masculino, os brasileiros ficam em primeiro lugar. Se busca fazer tais comparações apenas para alicerçar o entendimento de certas familiaridades entre as categorias do futebol, porém, até pela forma como o esporte foi concebido e disseminado é certo que as desigualdades são mais agressivas.

A proteção do futebolista menor de idade e o incentivo à formação de atletas são alguns dos princípios amparados pelas regras de transferência desde o primeiro momento, e para os quais não há diferenciação de gênero.  Apesar disso, um mercado amplamente movido pelos negócios e pelo dinheiro, que já possui como diretriz o Training Compensation para o incentivo ao desenvolvimento de novos atletas, simplesmente decide não cumprir suas próprias convenções quando diz respeito às atletas mulheres.

Se bem a uniformidade nas transferências e a mobilidade das jogadoras são as principais justificativas para tanto, por que se permite a inclusão de grandes cifras à título de transfer fee?

Anna Peniche Adame[xvi] foi incisiva ao afirmar, na tradução livre, que não entende a razão da mulher ter que pedir aceitação sempre que quer realizar algo diverso do que é tradicionalmente visto como reservado ao homem. É, portanto, vital que qualquer normativa que possua um cunho de isolamento seja aferida com o escopo de transformar e melhorar a realidade.

Por óbvio que o tema ultrapassa os dados aqui trazidos, que só foram possíveis de acessar desembaraçadamente a partir dos relatórios oficiais decorrentes do emprego do TMS.

E, por falar no sistema de transferências, não se pode olvidar de um ponto chave do Training Compensation: a categorização dos clubes. Atendendo a este método, as associações membro devem classificar seus clubes afiliados nas categorias previstas na circular em vigor, tendo em conta o investimento financeiro de cada entidade de prática na formação de jogadores. Com isso, é realizado cálculo para estimar os custos que o novo clube teria incorrido caso tivesse treinado o atleta desde a formação. O item 5.4 do Anexo 4 do RSTP salvaguarda o contexto de atletas entre o 12º e 15º aniversário, determinando que o Training Compensation, neste caso, seja baseado nos valores prognosticados para os clubes de categoria 4.

Para que não sejam fixados em valores imoderados e, ainda assim, sejam capazes de promover o recebimento da compensação pela formação, motivando o desenvolvimento das atletas, o Training Compensation para a categoria feminina, poderia carregar um status diverso através de uma nova espécie de classificação.

Diante disso, torna-se substancial a exposição de um estudo econômico aprofundado para explorar a viabilidade da implementação do Training Compensation e seus benefícios para o futebol feminino. O Presidente da FIFA[xvii] reafirma seu compromisso quando diz que, à medida que o interesse pela categoria aumentar, o domínio cognitivo sobre o cenário do futebol feminino de elite é salutar. A assessora da FIFA[xviii], Reyes Bellver, conta que a entidade acredita que é necessário atuar em favor da categoria, porque as jogadoras e os clubes merecem, mas ainda faltam líderes nas instituições que admitam que o futebol feminino pode crescer e constituir uma identidade própria. Por essa perspectiva, é certo que a entidade é capaz de revisitar o tema e cogitar alternativas ao instituto original, de forma que se possa desfrutar do bônus sem dificultar a mobilidade das atletas.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.


[i] Advogada. Pós-graduada em Compliance e Gestão de Riscos. Especialista em Compliance no Futebol. Diplomada em Gênero e Esporte e Gestão Esportiva. Procuradora na 6ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol. Auditora na 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Judô. Auditora no Pleno do TJD/PR do Futsal. Presidente da ALL Esportes Brasil. Secretária da Comissão de Direito Desportivo da OAB/PR. Membro Filiada e Colunista do IBDD.

[ii] BRAGA, Ana Paula. Instagram Stories. Disponível em: <https://www.instagram.com/anapaulabraga.adv/>.

[iii] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Regulations on the Status and Transfer of Players. Disponível em: <https://digitalhub.fifa.com/m/32c1970589af6f92/original/maqzja40s2b90xdxik0k-pdf.pdf>.

[iv] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Circular n. 769. Disponível em: <https://digitalhub.fifa.com/m/52905820e6b2bd01/original/dml3hvtpgzmjkbn5hixd-pdf.pdf>.

[v] EUROPEAN UNION. Case C-415/93. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/EN/TXT/PDF/?uri=CELEX:61993CJ0415&qid=1657635503939&from=EN>.

[vi] EUROPEAN UNION. Case C-325/08. Disponível em: <https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:62008CJ0325&from=EN>.

[vii] CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Regulamento Nacional de Registro e Transferência de Atletas de Futebol 2022. Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202201/20220103141959_422.pdf>.

[viii] CONFEDERAÇÃO BRASILEIRA DE FUTEBOL. Resolução da Presidência n. 01/2019. Disponível em: <https://conteudo.cbf.com.br/cdn/202009/20200918145239_131.pdf>.

[ix] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Clearing House. Disponível em: <https://www.fifa.com/en/legal/football-regulatory/clearing-house>.

[x] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Women’s Football Strategy. Disponível em: <https://digitalhub.fifa.com/m/baafcb84f1b54a8/original/z7w21ghir8jb9tguvbcq-pdf.pdf>.

[xi] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. Transfer Matching System. Disponível em: <https://www.fifa.com/legal/football-regulatory/player-transfers>.

[xii] IRISH TIMES. Women’s football clubs call for compensation when young players lured to UK. Disponível em: <https://www.irishtimes.com/news/social-affairs/women-s-football-clubs-call-for-compensation-when-young-players-lured-to-uk-1.4850992>.

[xiii] GLOBO ESPORTE. Multa para “assustar” e saída após Mundial Sub-17: os passos de Jhonson, nova promessa brasileira. Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/futebol-feminino/noticia/2022/05/22/multa-para-assustar-e-saida-apos-mundial-sub-17-os-passos-de-jhonson-nova-promessa-brasileira.ghtml>.

[xiv] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. FIFA Global Transfer Report 2021. Disponível em: <https://digitalhub.fifa.com/m/2b542d3b011270f/original/FIFA-Global-Transfer-Report-2021-2022-indd.pdf>.

[xv] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. International Transfer Snapshot January 2022. Disponível em: <https://digitalhub.fifa.com/m/617fe2e0602c3e7/original/International-Transfer-Snapshot-January-2022.pdf>.

[xvi] FOOTBALL LEGAL. Women’s Football and the Challenges of Training Compensation. Disponível em: <https://www.football-legal.com/content/womens-football-and-the-challenges-of-training-compensation>.

[xvii] FEDERATION INTERNATIONALE DE FOOTBALL ASSOCIATION. FIFA Annual Report 2021. Disponível em: https://digitalhub.fifa.com/m/7b8f2f002eb69403/original/FIFA-Annual-Report-21.pdf>.

[xviii] PALCO 23. Reyes Bellver: “Faltan líderes que crean de verdad que el fútbol femenino puede crecer”. Disponível em: <https://www.palco23.com/competiciones/reyes-bellver-fifa-faltan-lideres-que-crean-de-verdad-que-el-futbol-femenino-puede-crecer>.

 

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