UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A APLICABILIDADE PRÁTICA DO ART. 18BIS DO FIFA RSTP: “THIRD-PARTY INFLUENCE” (TPI)

Fernanda Chamusca¹

Membro Filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo

Manual de TPI e TPO da FIFA, lançado em 09 de Setembro de 2020. Tal como o nome já sugere, serve como um guia e uma instrução para evitar a desconformidade com o sistema. Peça importante da famigerada análise de risco e atuação do Compliance de um clube. O TPI resta vedado pelo art. 18bis do FIFA RSTP e o TPO pelo art. 18ter do FIFA RSTP.

A jurisprudência sempre foi fundamental e de grande valia, mas compreender a aplicabilidade do instituto pelas palavras de quem decide e julga é a cereja do bolo. Por mais claro que sejam os artigos, existem brechas interpretativas que dependem sempre do caso concreto. Um caminho no escuro em muitos casos. Mas quando temos um manual, temos um mínimo, uma segurança jurídica desde a construção do contrato até um possível litígio. Mais clareza e transparência, mais um material que podemos usar na proteção e defesa dos clubes.

No presente momento, realizando uma análise restritiva do Manual quanto ao instituto da Third-party influence”(TPI), a ideia permeia a independência e autonomia dos clubes perante os demais aos quais negociam, com total liberdade para tomar decisões de acordo com suas necessidades esportivas, trabalhistas e relacionadas a transferência de atletas, sem interferência de nenhuma outra entidade.

A intenção da FIFA foi criar um tipo que evitasse ao máximo a interferência entre clubes por conta de interesses e negócios externos. E quem fez o papel mais importante nessa fiscalização surgiu em 2009: o Transfer Matching System – TMS, potencializando a transparência dos dados.

O sistema de Compliance estabelecido com a implantação do sistema buscava uma equação simples: a partir de uma análise sistemática e aprofundada dos dados inseridos no TMS sobre as transferências, seriam verificados os termos acordados entre as partes. Como? Analisando diretamente os contratos firmados entre os clubes. E aqui está o ponto mais importante e que serve para todas as negociações: cada palavra, cada frase, cada sentido definido em um contrato de transferência de atleta IMPORTA.

O contrato é a prova mais importante nesse processo, pois ele vai dizer se houve qualquer possível intenção de influenciar para além dos termos permitidos e definidos naquela específica negociação. De logo, uma primeira crítica: É interessante salientar que a vedação de TPI trata-se de uma regulamentação punitiva, o que pela ordem deveria ser aplicada de maneira restritiva. Para ser mais clara: as palavras do contrato/termos acordados entre as partes deveriam ser interpretados de maneira restrita ao sentido literal empregado ao termo. Uma interpretação ampla e generalista de um contrato sob a ótica de uma vedação de natureza punitiva é um manifesto equívoco, a meu ver.

Durante todo período de aplicação do TPI, a redação foi modificada para conseguir alcançar um denominador comum para permitir a FIFA regular tanto os clubes influenciadores, quanto os influenciados. O antigo dispositivo que tinha em sua redação “qualquer outra parte ou terceiro interessado” não gerava segurança na aplicabilidade das regulamentações internacionais, bem como havia a dúvida sobre tal infração ser de natureza formal ou se dependia da produção do resultado diretamente. Uma analogia diante de um breve passeio pelo Direito Penal, quando têm-se crime formal e crime material.

A atual redação compreende, portanto, não somente o clube que influencia de certa forma nas decisões internas de outros clubes quanto a sua autonomia e liberdade decisória sobre matérias trabalhistas e concernente a transferência de seus atletas, meramente relacionadas a resultados esportivos, mas também os clubes influenciados que aceitam tal condição, independentemente da compensação ou vantagem que tenha sido recebida.

De forma incondicionada, a FIFA assumiu papel do órgão fiscalizador, buscando a transparência e independência dos clubes, para que o critério financeiro não fosse determinante. Caso o fosse, teríamos claramente uma desigualdade entre os clubes de grande expressão e potencial financeiro, pra aqueles de menor expressão e em busca de negócios vantajosos com grandes clubes.

O 18bis, portanto, visou a vedação de toda e qualquer possibilidade de influência e manipulação de interesses de um clube poder interferir nas decisões esportivas e internas de outra agremiação, o que em nenhuma hipótese deve ser confundido com o mero dever de notificar. A própria possibilidade de se repartir e negociar os Direitos Econômicos de um atleta traz esse cerne da informação ser necessária para que o direito de um clube não seja ignorado.

Tal como evidenciou o jurista grego e grande amigo Antonios Vogiatzakis, em um dos seus artigos² no blog Lex Sportiva, sobre a lógica dos Direitos Econômicos do Atleta: “O conceito de direitos econômicos no futebol parece ser muito mais complexo do que o de direitos federativos, na medida em que podem, pelo menos em tese, pertencer a mais de um clube concomitantemente, visto que podem ser dissociados dos direitos federativos. Em termos práticos, isso significa que ainda hoje um clube pode possuir os direitos federativos de um jogador, que são fundamentais para a sua formação, apesar de ter adquirido apenas parte dos seus direitos econômicos.” Ou seja, mais de um clube pode ser detentor do percentual dos Direitos Econômicos de um atleta, por mais que os Direitos Federativos dele pertençam naquele momento a apenas uma agremiação.

Agora, após o entendimento sobre a amplitude da divisão de Direitos Econômicos, questiono: ser notificado sobre uma potencial transação futura gera uma interpretação sobre violação do art. 18bis do FIFA RSTP? Entendo que não. É regulamentada a possibilidade de partilha dos direitos econômicos entre clubes formadores do atleta, o que gera uma legítima expectativa sobre um potencial valor futuro a ser recebido. Acontece que, no mercado do futebol e suas projeções, muitos clubes possuem diversos atletas e contratos de direitos econômicos partilhados para coordenar, e em diversas vezes acaba não sendo informado sobre uma transferência de um atleta realizada entre clubes, na qual faria jus a um percentual dos direitos econômicos firmado anteriormente, ou até mesmo alguns casos mecanismo de solidariedade.

Se clubes partilham Direitos Econômicos, estamos falando em uma solidariedade de Direitos, a expressão pura da Pacta Sunt Servanda onde um clube aceita “apostar” em um retorno futuro financeiro em potencial e, por conta disso, admite facilitar a liberação do atleta em termos menos vantajosos em um curto prazo. Estamos falando em análises de riscos, fruto da arte do empreendedorismo, inerente ao mercado do futebol, traçando perfis de clubes que investem em atletas acreditando no potencial retorno financeiro que podem receber, abrindo mão de cobrar os valores de mercado antecipadamente. No entanto, no mundo do futebol, me arrisco a considerar esse direito análogo ao que entende-se conceitualmente por Direito Potestativo do clube que detém os Direitos Federativos do atleta, onde só tal agremiação pode dizer onde, quando, e como aqueles Direitos Econômicos serão negociados, sem qualquer possibilidade de contestação.

No fim das contas, estamos praticamente frente a um contrato de adesão. O clube anterior do atleta escolhe abraçar ou não o risco de uma negociação futura que só lhe caberá cobrar sobre os termos definidos e estabelecidos entre o clube que detém o registro do atleta e o novo clube que o contratou. O clube anterior do atleta teria, na prática, duas opções: forçar o mercado a oferecer uma proposta relevante e vender 100% dos Direitos Econômicos do atleta de imediato, ou correr o risco de deter uma porcentagem na intenção do valor de mercado desse atleta valorizar e o clube que detém o seu registro negocia-lo em termos mais vantajosos e que compensem a espera do formador.

Em que pese os valores de mercado não serem extraordinários quando estamos falando de clubes pequenos, é cediço que cada clube defenderá o seu interesse pessoal e assumirá os riscos de qualquer potencial disputa. O clube que vende o atleta não está obrigado por nenhuma regulamentação a notificá-lo sobre a transferência para que o formador possa cobrar os seus direitos, bem como o próprio instituto do TPI veda diversas possibilidades de limitação contratual baseada em qualquer proteção aos Direitos Econômicos de Clubes formadores. Ao fim e a cabo, as vantagens para o clube anterior do atleta tornam-se ínfimas diante do risco. Risco esse que pode ser bom em teoria, mas muitas vezes acaba se tornando um grande prejuízo.

A regra trazida pelo FIFA RSTP é clara: não deve existir qualquer tipo de influência. Portanto, por mais pessoal que seja a opinião acima sobre as desvantagens dessa relação para o clube anterior do atleta que mantém percentual de Direitos Econômicos e sobre a real possibilidade desse formador participar de uma negociação futura, a notificação antes da celebração do negócio, diga-se da transferência do atleta acontecer, pode ser passível de interpretação prejudicial e tipificada pela vedação trazida pelo art. 18bis. O clube anterior do atleta não deve interferir diretamente nos termos contratuais com o novo clube, bem como não pode estabelecer limites para que essa negociação aconteça. E essa influência começa a ser observada desde o contrato entre o clube anterior detentor de um percentual de Direitos Econômicos e o clube que passa a ter também os Direitos Federativos do Atleta.

Ser informado de um negócio concluído e sacramentado, de outro lado, não gera influência ou interferência de um clube para outro. A mera notificação evidencia uma clara necessidade de comunicação entre as partes e respeito a direitos repartidos e preestabelecidos. Um clube anterior do atleta que faz jus a percentual de Direitos Econômicos, e de certa forma deseja proteger o seu percentual, poderá tão somente ser informado de uma transação concluída se assim o manifestar.

Entretanto, é manifesta a necessidade de informar que em nenhum dos regulamentos da FIFA há qualquer disposição que obrigue as partes a notificarem clubes que fazem jus a um percentual de Direitos Econômicos para que possam cobrar os valores devidos, apenas há a obrigatoriedade de comunicar a FIFA os acordos firmados e os valores pagos. Na boa e velha linguística digital e contemporânea: “O clube que lute!” e corra atrás das informações, ou até mesmo inicie um procedimento na FIFA para ter acesso a essas informações.

Essa proibição foi fundamentada como uma regulamentação exclusiva para clubes e como uma medida de prevenção, sendo eles os únicos responsáveis por determinar ou não se uma das partes adquire a habilidade de influenciar a outra em matéria contratual trabalhista ou sobre transferências de atletas. Sempre válido lembrar: apenas clubes formadores ou anteriores onde o atleta já esteve registrado, e detentores dos Direitos Federativos do atleta podem ter percentual sobre seus Direitos Econômicos.

E a proibição se consuma no momento que esses clubes estabelecem qualquer relação de influência por meio de contratos e acordos de qualquer tipo com qualquer entidade ou pessoa relacionada.

No caso da vedação de TPI, caracteriza-se a infração pela mera conduta de firmar o contrato com uma potencial influência futura, e para considerar um clube como infrator não é necessário que a efetiva habilidade de influenciar outro clube produza qualquer resultado de interferência em qualquer relação trabalhista ou relacionada a transferência de atletas. A ação de firmar o contrato com qualquer cláusula duvidosa que gere um entendimento de possível influência, por si só, já é passível de sanção.

Acontece que se a intenção com o TPI é estabelecer uma regulamentação preventiva, em que os clubes evitem firmar contratos com cláusulas dúbias ou passíveis de interpretações desfavoráveis quanto à vedação do art. 18bis, deveriam então ser avaliadas as sanções estabelecidas. Não se pode considerar que uma potencial influência tenha o mesmo rigor que uma influência consumada e comprovada, tal como um clube que jamais infringiu qualquer regulamentação deva ser sancionado diretamente com multa pecuniária em primeira condenação. E diga-se: uma multa que não é das mais acessíveis, principalmente quando analisada frente as variações cambiais.

Tanto o clube influenciador, que ganha a habilidade de interferir de certa forma nas questões internas de outro clube, como o clube influenciado, que autorizou tal influência, são sujeitos que violam a vedação determinada pelo art. 18bis do FIFA RSTP. Portanto, ao firmar acordos que permitem interferências de qualquer natureza nas questões trabalhistas e sobre transferências de atletas, tal ação resulta em uma questão que permeia a ideia de conflito de interesses, que pode desencadear em outros institutos também vedados no mercado do futebol, tal como match-fixing e manipulação de resultados.

O manual da FIFA, com maestria, evidencia a integridade e transparência do futebol como princípios indisponíveis em qualquer relação dentro do mercado do futebol, principalmente a relação entre clubes. Altos investimentos, visibilidade exacerbada, potencialização de resultados financeiros através do uso profissional das redes sociais. Uma equação que traz a supervalorização do futebol, uma maior circulação econômica, e consequentemente maiores oportunidades de negócios.

As críticas supracitadas não são direcionadas ao manual, mas a ideia do instituto do TPI quando aplicado na prática. Pensar o TPI com uma visão eurocêntrica me parece uma opção interessante, porém bem distinta da realidade que, por exemplo, se encontra o futebol sul-americano. De alguma forma, o clube anterior do atleta deveria ter uma mínima chance de garantir certa proteção ao seu percentual sobre os Direitos Econômicos de um atleta, sob a ótica da Pacta Sunt Servanda em essência e ao risco que se corre, ou quiçá existir uma obrigação nos regulamentos da FIFA para que os clubes tivessem o dever de comunicar as partes que detêm percentual dos direitos econômicos, através do TMS Report, nos casos de transferências internacionais, ou dos contratos firmados com o novo clube, caso seja transferência nacional. Sugestões e ideias que podem ser pensadas em conjunto.

Busca-se o aperfeiçoamento do sistema, de acordo com a aplicabilidade prática desse instituto. O medo de ser sancionado faz com que os clubes abram mão de diversos direitos, para que determinadas cláusulas não sejam passíveis de interpretações contrárias e que direcionem qualquer tipo de influência. O Manual chega como um auxiliar nessa análise de risco, mesmo sabendo que não existe interpretação restrita ou jurisprudência absoluta, dependendo sempre do “caso-a-caso”.

*O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade da Autora deste texto.


¹ Especialista pelo Master em Direito Internacional Desportivo pelo ISDE Law & Business School – Madrid/ESP. Procuradora do STJD do Futebol e do STJD do Voleibol. Pós-Graduanda em Direito Digital. Membro e colunista do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Membro da Women In Sports Association – Suíça. Advogada desportiva no Jordão & Possidio.

² https://lexsportiva.blog/2019/05/24/tpo-tpi-hate-the-game-and-the-player/