Visão realista do futebol brasileiro

Futebol Brasileiro: crise e caminhos para a sua reconstrução
Álvaro Melo Filho (*)

O futebol brasileiro passa por um processo de turbulência e até de convulsão promanado de fatores endógenos e exógenos que desbordam do campo puramente desportivo. Com efeito, o futebol como o mais relevante e globalizado fenômeno de massa, em permanente mutação, torna-se sensível aos influxos econômicos, políticos, sociais e culturais, sendo impossível fazê-lo infenso aos reflexos do jogo fora das quatro linhas.
Nesse contexto, alguns estão a verberar contra o “monopólio desportivo” e irresponsabilização administrativa dos dirigentes de confederações, federações e clubes profissionais de futebol, e, até cogitam de elaborar uma legislação interventiva do Estado para controlar os poderes e responsabilidades dos administradores desportivos, sob o argumento de que nada é mais público neste país do que o futebol.
Esquecem que os entes envolvidos com o futebol têm uma origem tipicamente privada, porque criados pela livre vontade de seus membros e fundados em um pacto assocationis e, suas responsabilidades, na esfera administrativa, decorrem de seus estatutos. Olvidam que todas as entidades diretivas e praticantes de futebol são, juridicamente, categorizadas como entes privados, com atuação resguardada pelos postulados constitucionais da liberdade de associação e da autonomia desportiva. Desconhecem que não há recursos públicos canalizados para o futebol, e, muito menos, uma lei de incentivos fiscais motivando o aporte de recursos de pessoas físicas e jurídicas em troca de benefícios fiscais como existem em prol da cultura. Ignoram que o conceito de “privado” é aquele oposto ao “público”, este, vinculado ao Estado em qualquer de suas formas e seu patrimônio, o que não ocorre com o futebol.
Tais colocações, longe de inibir o rompimento do statu quo e de dar suporte a administrações subterrâneas e contabilidades paralelas, pretendem ser o ponto de partida para apontar, exemplificadamente, alternativas e caminhos, sempre com o animus de reconduzir o futebol brasileiro ao lugar que merece no concerto mundial.
Buscando as causas reais (e não as aparentes) da crise do futebol brasileiro, cabe repontar ser o desporto, inclusive o futebol, um bem supérfluo e de consumo não-essencial, sobretudo num quadro econômico de constante desvalorização do real que, agregado à baixa renda per capita do nosso povo, tornam visível a fragilidade da estrutura e conjuntura do nosso futebol diante da concorrência internacional.
De outra parte, violento processo de urbanização e de especulação imobiliária dizimou os campos de várzea e terrenos baldios onde, com liberdade, as crianças davam seus primeiros dribles e chutes, desenvolvendo o talento, a criatividade e o “jeitinho atrevido” brasileiro de jogar, fora dos “padrões” impostos pelos laboratórios dos clubes e escolinhas.
Com isso, a geração da improvisação, dos dribles desconcertantes e do futebol espontâneo deu lugar à geração daqueles modelados nas escolinhas – o “jogador de estufa” ou o “jogador robotizado”, escravo da preparação física e do esquema tático.
Substituiu-se o atleta brotado in vita pelo atleta forjado in vitro, fato que, somado à homogeneização do futebol mundial, pôs fim ao contraste entre a habilidade brasileira e a “cintura dura” dos estrangeiros.
É preciso acabar com a retórica da “superioridade do futebol brasileiro”, e, reconhecer que, além da nossa mediocrização técnica, boa parte dos 204 países do globalizado mundo do futebol já domina seu repertório básico, como consequência da progressiva mercantilização do desporto jungida à crescente mediatização do espetáculo desportivo.
Sem esta consciência dos óbices econômicos, sem a visão realista do nivelamento técnico mundial, e, sem a adoção de medidas corajosas e concretas para a reconstrução do nosso combalido “desporto das multidões”, o Brasil, em curto prazo, deixará de ser o “país do futebol”.
Impõe-se, assim, uma inarredável mudança de mentalidade retrógrada e de hábitos viciados de dirigentes, atletas, técnicos, árbitros, julgadores, torcidas e imprensa desportiva. Demais disso, colocando a latere os interesses circunstanciais, as defasadas estruturas de poder e as decisões casuísticas, urge criar-se um novo modelo para o futebol brasileiro a partir da implementação dos seguintes pontos vitais:

1- Arquitetar calendário inteligente, com competições interdependentes, hierarquizadas e sem sobreposição, onde cada clube jogue, no máximo, duas vezes por semana, vedadas alterações de datas e horários dos jogos, de modo a propiciar não apenas a venda antecipada de ingressos (carnês), como igualmente a comercialização de direitos de transmissão de TV para o exterior, componentes indissociáveis para o sucesso dos campeonatos e para financiamento mais consistente dos clubes.

2- Equalizar e realinhar os salários dos atletas, elevados para poucos e baixos para a grande maioria, aproveitando o fim do passe, as garantias legais para o clube-formador e a possibilidade de contratos de até cinco (5) anos para elidir o surrealismo e a pressão inflacionária das folhas de salários geradoras de instabilidade técnica e de orçamentos desequilibrados dos clubes de futebol que, não raro, são compelidos a se desfazer de seus “astros” para atenuar crises financeiras.

3- Administrar empresarialmente (e não emocionalmente) o futebol, onde, malferindo-se princípios econômicos, sempre arrecadou-se pouco e se gastou muito, sendo inadiável substituir a gestão amadorista incompetente pela qualificação profissional de dirigentes, incorporando nova mentalidade a partir de modelos organizacionais e responsabilidades jurídicas para inibir direção passional, planejamento imediatista, vulnerabilidade ética e improbidade administrativa de muitos que vivem no ou do futebol.

4- Investir em estádios de multiuso, dotados de conforto, segurança, estacionamento, fácil acesso, lugares numerados e outros requisitos indispensáveis para atrair torcedores em quantidade, juntamente com suas famílias, visando a, de um lado, ampliar a arrecadação de bilheteria do “jogo das multidões”, e, de outro, obter receitas alternativas com os equipamento de lazer e “catering”, tais como, parques infantis, choperias, restaurantes, lojas, shows, cinemas, teatros, etc.

5- Explorar não só o patrocínio nos uniformes de competição, como também o “merchandising” dos clubes (além de combater a “pirataria” de produtos com suas marcas e símbolos), agregando-os como ferramentas essenciais e fontes permanentes de recursos financeiros, dispensando os investimentos voláteis, fugazes e especulativos de efeitos tão deletérios para o futebol-business onde se procura consorciar a performance técnica com o caixa equilibrado.

6- Ampliar as receitas oriundas da cessão de direitos de transmissão de TV, dado que os estádios viraram estúdios, abrindo espaços para os contratos de pay-per-view, de TV por assinatura, de direitos de Internet e de publicidade virtual e regionalizada, sempre com a cautela de não banalizar ou vulgarizar o produto futebol com o excesso de jogos que prejudicam os atletas, desgastam a imagem dos patrocinadores e saturam os telespectadores.

7- Alterar o ineficiente e anacrônico ordenamento da Justiça Desportiva para que sua autonomia e independência não sejam apenas formais e retóricas, o que exige inadiável reformulação dos Códigos Desportivos e adoção de procedimentos que assegurem imediatidade, agilidade e transparência nas decisões proferidas na esfera desportiva, de modo a tornar os órgãos judicantes desportivos instrumentos de solução e não de problemas para o futebol.

8- Lutar para que a International Board faça regras de jogo mais atrativas, humanizando e emocionalizando o futebol, com a inclusão, por exemplo, da Falta Coletiva, à semelhança do adotado pela própria FIFA no Futsal, mutação essencial para inibir a violência, tornar o resultado final imprevisível e restringir a danosa média de 70 faltas por jogo que aumenta o número de contusões de atletas, prejudica a estética do espetáculo e infirma o fair-play.

9- Elaborar Regulamentos claros, com fórmulas simples e compreensíveis, em que cada equipe dispute, no máximo, dois jogos por semana, adotando-se preferencialmente:

– para as competições mais longas e com menor número de participantes, o turno e returno, com pontos corridos, ou, com os vencedores dos dois turnos fazendo a partida final;

– para as competições mais curtas e com maior número de participantes, o sistema “mata-mata”, valorizando-se os gols do time visitante.

10- Respeitar as normas legais e regulamentares de acesso e decenso, em todas as circunstâncias e a despeito de quaisquer pretextos ou pressões, dado que a quebra do critério técnico ou “virada de mesa” é nociva à credibilidade do futebol e compromete, irremediavelmente, qualquer processo de reconstrução duradoura do exaurido modelo brasileiro.

* Advogado. Professor de Direito. Membro da FIFA.

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