Mariana Chamelette¹
Membro filiada ao Instituto Brasileiro de Direito Desportivo (IBDD)
Na última semana, foi publicado na Coluna Jus Desportiva do IBDD, (brilhante) artigo, de autoria do coordenador do Instituto e colunista Renato Renatino Santos, sobre Fair Play Financeiro e a sua relevância². O artigo me chamou a atenção não apenas pela didática na demonstração das informações, mas também por apresentar o projeto do Fair Play Financeiro da UEFA como a iniciativa de governança mais bem sucedida da entidade europeia, bem como por destacar a necessidade de implementação de medida equivalente no Brasil.
Nos últimos anos, no Brasil, muito tem se ouvido falar acerca de governança corporativa no desporto. O mundo da governança esportiva, aliás, enfrenta, no país, uma infinidade de questões complexas, decorrentes de falhas na gestão de entidades de administração e de prática desportiva, e de escândalos de corrupção, que resultam justamente na necessidade de se revisarem as estruturas de governança dentro do esporte ou, quiçá, na reformulação de todo sistema desportivo.
No entanto, muitos atores do esporte têm empreendido esforços na elaboração e aplicação de novos conjuntos de normas e regras para que organizações esportivas protejam-se contra falhas futuras. Nesse contexto, entidades vêm sendo reestruturadas a fim de que estejam cada vez mais alinhadas a padrões definidos externamente, mitigando-se, dessa forma, riscos legais, judiciais e reputacionais.
Ocorre que, como bem salientado pelo meu colega colunista, muito mais precisa ser feito pela boa governança do esporte brasileiro. Caminhando na mesma estrada, embora por outro trajeto, no presente breve texto, pretende-se apresentar o compliance como mecanismo com potencial transformador na gestão de entidades desportivas.
Pois bem. Inicialmente, há de se ter em vista que a palavra compliance tem origem no verbo em inglês to comply, que significa obedecer a um comando, cumprir uma regra, um pedido³. Assim, em tradução livre, estar “em compliance” é estar cumprindo, satisfazendo ou realizando “uma ação imposta”[fusion_builder_container hundred_percent=”yes” overflow=”visible”][fusion_builder_row][fusion_builder_column type=”1_1″ background_position=”left top” background_color=”” border_size=”” border_color=”” border_style=”solid” spacing=”yes” background_image=”” background_repeat=”no-repeat” padding=”” margin_top=”0px” margin_bottom=”0px” class=”” id=”” animation_type=”” animation_speed=”0.3″ animation_direction=”left” hide_on_mobile=”no” center_content=”no” min_height=”none”][4], referindo-se, em âmbito jurídico, ao cumprimento pleno de normas constitucionais, legais, regulatórias, além de diretrizes e regulamentos, por aquele a quem tais regramentos são aplicáveis.
Entretanto, para além do caráter legal, os deveres de se estar em conformidade também estão diretamente relacionados a princípios éticos, atrelados a ideais de honestidade, boa gestão e transparência.
O compliance, no formato conhecido atualmente, teve origem nas instituições financeiras, com a criação do Banco Central dos Estados Unidos, em 1913. Contudo, seus princípios e conceitos podem (e, sugere-se, devem) ser aplicados a todas as organizações, sejam elas públicas, privadas ou do terceiro setor[5].
A finalidade precípua do compliance é a prevenção, a partir do planejamento de diretrizes e de condutas que estimulem a redução nos riscos da atividade das corporações[6]. Portanto, o objetivo primordial de sua implementação é a redução de riscos de o ente ou de seus representantes serem penalizados (inclusive, mas não apenas, em âmbito criminal)[7].
Todavia, o compliance não se esgota na prevenção de riscos, tendo como sustentáculos, ainda, a detecção e a correção de problemas. Consequentemente, eleestá vinculado a uma posição de observância de normas preventivas que visem evitar perigos futuros[8], possibilitando a prevenção, a detecção e a correção de quaisquer irregularidades envolvidas na atuação e na gestão de entidades.
Com efeito, as organizações que não estão “em compliance” sujeitam-se a mais riscos, como por exemplo, fraudes econômicas e fiscais, vazamento de informações, assim como de danos à imagem, decorrentes de notícias que possam vinculá-las a casos de corrupção, lavagem de ativos, dentre outros.
Dessa maneira, à luz do interesse público do desporto e, tendo em vista que o esporte não é apenas entretenimento, mas também um negócio que movimenta significativa quantia financeira ao redor do mundo, é inegável que há interesse mútuo do Estado e dos stakeholders do esporte na autorregulação regulada das entidades, decorrente da execução de programas de compliance.
Um programa de compliance é um instrumento híbrido que mescla normas públicas (legais, reguladoras etc.) e particulares (diretrizes éticas), visando duas finalidades fundamentais, quais sejam, (i) o objetivo imediato de criação exponencial de normas que regulem a atividade da entidade a partir de princípios éticos e de cumprimentos de normas; e (ii) o objetivo mediato de desenvolvimento de uma cultura corporativa de mitigação de riscos e de proteção contra problemas legais, reputacionais ou judiciais.
A partir de tais premissas, verifica-se que o compliance de uma entidade esportiva deve abarcar todos os aspectos de prevenção de riscos, por meio da garantia do cumprimento de normas legais e regulatórias, em âmbito desportivo, criminal, cível, trabalhista e tributário. Tais normas, aliás, poderão ser decorrentes de regramento nacional[9] ou internacional, especificamente, no que se refere a normas desportivas estrangeiras recepcionadas pelo ordenamento jurídico brasileiro ou referentes a entes internacionais vinculados a entidades nacionais.
Logo,programa de compliance desportivoefetivo é aquele que possibilita efetiva transparência na administração da entidade desportiva, por meio de controles internos em constante evolução e que possibilite a conformidade dos atos de gestão com a normativa vigente e com princípios éticos.
Nessa toada, a implantação de um programa efetivo de compliance por um ente do desporto deve visar à formação de uma cultura de respeito às normas, exigindo substancialmente a criação, pelas entidades, de códigos de conduta, bem como a implementação de departamento estruturado, independente, com atribuições suficientes para o desenvolvimento das atividades de prevenção e fiscalização[10].
A singularidade do esporte caracterizada também pela composição única e pelos fatores específicos de cada modalidade e de cada entidade desportiva, não possibilitam a apresentação de um modelo uniforme de implementação de melhores práticas.
Entretanto, embora cada programa deva ser desenvolvido individualmente por todos os entes interessados, os programas de compliance têm como premissa o seu desenvolvimento a partir de três pilares: prevenção, detecção e sanção.
Ademais, o desenvolvimento e a execução contínua de um programa de compliance efetivam-se, em regra, a partir das seguintes etapas: formulação, implementação, consolidação e aperfeiçoamento.
A formulação abrange, inicialmente, a identificação e a análise de riscos, com sucessiva atribuição de competências dos agentes e adoção de códigos de ética e de conduta, bem como o desenvolvimento dos canais de denúncia. Tal passo é sucedido, notadamente, da fase de implementação, que se refere à instituição de mecanismos que assegurem que o programa seja instituído, organizado e conhecido por todos aqueles que afeta. Finalmente, as etapas da consolidação e aperfeiçoamento visam garantir a efetividade dos programas de compliance, por meio da avaliação contínua e da aplicação das sanções propostas.
Em síntese, os elementos essenciais de um programa de compliance de uma entidade desportiva são: a análise de riscos, sucedida do desenvolvimento e implementação de um Código de Ética/de conduta e da efetivação de um sistema sancionatório eficaz.
O código de ética e/ou código de conduta é o “instrumento que dirá ao mundo quem é a instituição, a que veio, e o que dela se deve esperar”[11]. Ou seja, trata-se do instrumento que informa os valores, princípios e normas que devem ser observados no cumprimento das atividades pelos atores a quem se destina. Evidentemente, para que seja efetivamente cumprido, o Código de Conduta deve conter em si mecanismos sancionatórios que assegurem a sua eficácia.
Outrossim, é imprescindível, ainda, que em dimensão institucional exista um compliance officer independente, que seja responsável pela eficiência, consolidação e aperfeiçoamento do programa de integridade da entidade.
Para além de tais premissas, há de se ter em vista que a demanda pela elaboração e implantação de políticas de compliance nas entidades desportivas não advém apenas de uma anseio generalizado por transparência e boa gestão, ou mesmo da necessidade de adaptação para obtenção de benefícios legais, tais como o Profut e as Leis de Incentivo ao Esporte, mas já é (e tende a ser cada vez mais) uma exigência mercadológica. Isso porque grandes empresas, patrocinadoras de eventos e entidades desportivas, não querem ter as suas marcas atreladas a escândalos que gerem danos à sua imagem, produto e credibilidade.
Assim, a fim de resguardarem a possibilidade de investimentos futuros, além de tutelarem a boa gestão de recursos e a reputação das entidades, os gestores desportivos devem adotar uma postura proativa no desenvolvimento de programas de integridade. Ademais, devem ser exemplo e englobar todos os stakeholders do desporto na construção da cultura ética das entidades.
Um outro aspecto a ser levado em conta é o conceito de proprietários ausentes, que foi forjado pelo sociólogo Zygmunt Bauman e é muito utilizado em âmbito corporativo para tratar dos interesses dos shareholders das empresas; no sentido de que eles devem estar alinhados aos interesses e práticas de gestão dos demais stakeholders por meio de bons instrumentos de governança e compliance.
No desporto, o interesse dos “proprietários ausentes” pode ser equiparado com os interesses dos torcedores que, mais do que ninguém, ao menos em regra, prezam pela boa gestão, longevidade e vitória de seus clubes. Nesse esteio, é inegável o interesse generalizado na implantação de bons instrumentos de gestão no esporte brasileiro, seja em âmbito macro, por exemplo, via políticas confederativas e federativas de obrigatoriedade de fair play financeiro – como bem destacado pelo colega Renato em seu artigo – e de outros mecanismos de integridade, seja em âmbito micro, por meio da implementação de sólidos e sérios programas de compliance em todas as entidades desportivas.
Convém salientar, neste ponto, que algumas das principais entidades do futebol no Brasil e no mundo vêm dando o exemplo na implementação de programas de integridade.
A FIFA, já há alguns anos, consolidou seu Código de Ética[12] e criou comitês de ética, auditoria e compliance. A CBF, também tendo em vista o melhor desenvolvimento do desporto, publicou no ano de 2017 o seu próprio Código de Ética, com o objetivo de “orientar as condutas éticas nas relações profissionais e comerciais envolvendo o futebol, de forma a tornar mais rigorosa a manutenção de alto padrão de moralidade e definir responsabilidades”[13]. Em âmbito federativo, e a título de exemplo, a Federação Paulista de Futebol possui o seu Departamento de Governança e Compliance, que atua no controle do cumprimento de normas externas e do seu Código de Ética e Conduta[14], objetivando resguardar a transparência da entidade.
É importante lembrar, ainda, que programas de compliance, por si só, não eliminam por completo os riscos inerentes a existência de qualquer entidade, mas eles vêm aperfeiçoar procedimentos institucionais, assegurando a preponderação de valores morais e éticos no ambiente do desporto.
Conclui-se, dessa forma, que os stakeholders do desporto devem assumir a responsabilidade de aderir proativamente a níveis mais elevados de conformidade por meio do desenvolvimento de sistemas de compliance e de estruturas de governança, com base nos pilares das melhores práticas. Embora por muitas entidades tal caminho já tenha começado a ser percorrido, há, evidentemente, ainda um longo caminho a ser trilhado no aprimoramento da gestão do desporto nacional.
* O conteúdo do presente artigo não necessariamente representa a opinião do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, sendo de total responsabilidade do(a) Autor(a) deste texto.
¹ Advogada especializada em Direito Penal Econômico e Compliance. Coordenadora Regional – São Paulo e Membro do Grupo de Estudos do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo – IBDD. Procuradora do Tribunal de Justiça Desportiva do Futebol – São Paulo. Membro da Comissão de Prerrogativas e da Comissão de Direitos Humanos da OAB/SP, Coordenadora do projeto Educação para Cidadania no Cárcere do Instituto de Defesa do Direito de Defesa – IDDD.
² Disponível em <https://ibdd.com.br/o-fair-play-financeiro-e-a-falta-de-previsao-no-futebol-brasileiro/>.
³ CAMBRIDGE INTERNATIONAL. Dictionary of English. Disponível em <https://dictionary.cambridge.org/pt/dicionario/ingles-portugues/comply>.
[4] GIOVANINI, Wagner. Compliance – A excelência na prática. São Paulo, 2014, LEC, p. 20.
[5] COIMBRA, Marcelo Aguiar; MANZI, Vanessa Alessi. Op. Cit., p. 1.
[6] SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; SAAD-DINIZ, Eduardo. Criminal Compliance: os limites da cooperação normativa quanto à lavagem de dinheiro. Revista de Direito Bancário e Mercado de Capitais n. 56. São Paulo, 2012, RT, p. 600.
[7] SARCEDO, Leandro. Compliance e responsabilidade penal da pessoa jurídica: construção de um novo modelo de imputação, baseado na culpabilidade corporativa. [Tese]. São Paulo: USP; 2014, p. 57.
[8] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. NAHUR, Marcius Tadeu Maciel. Criminal compliance e ética empresarial: novos desafios do direito penal econômico. Porto Alegre, 2013, Nuria Fabris, p. 29.
[9] Cita-se, a título exemplificativo, a CLT, o CTB, a Lei Pelé, o Estatuto do Torcedor, a Lei do Profut, a Lei Anticorrupção, as normativas das Federações e Confederações, dentre outras.
[10] BUONICORE, Bruno Tadeu. Criminal Compliance como gestão de riscos empresariais. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2012-jul-01/bruno-buonicore-criminal-compliance-gestaoriscos-empresariais>.
[11] CANDELORO, Ana Paula Pinho et al. Compliance 360°: riscos, estratégias, conflitos e vaidades no mundo corporativo. São Paulo, 2012, Trevisan Editora Universitária, p. 58.
[12] Disponível em <https://resources.fifa.com/mm/document/affederation/administration/50/02/82/codeofethics_v211015_e_neutral.pdf>.
[13] Disponível em <http://conteudo.cbf.com.br/etica/codigo.pdf>.
[14] Disponível em <https://futebolpaulista.com.br/Repositorio/Institucional/Estatuto/636753225043361566.pdf>.
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